Ideologias, atualmente, tornaram-se problemas graves: anestesiam a mente e matam o discernimento. O mundo das ideias quase anula o mundo dos fatos, porque, com a mente anestesiada, os impactos e efeitos concretos dos acontecimentos se tornam psicologicamente irrelevantes. Afinal, são as ideias e crenças que satisfazem, dão prazer, alimentam e inflam o ego.
Se ideias e crenças se mostram disfuncionais na prática — atestadas por estatísticas e dados constatados —, melhor fingir que não se vê, ou esboçar uma atitude de quem está se sentindo incomodado ou ofendido: “Mexer com minhas crenças é mexer comigo”. Divergências de ideias viram questões pessoais, de honra, de defesa inconsciente de um ego ferido.
Talvez, as ideologias políticas e religiosas sejam as mais desastrosas da atualidade. A religiosa afasta as pessoas do mundo dos fatos; o enfoque é voltado para o mundo abstrato dos céus. Se estiver chovendo canivetes, basta se esconder ou rezar cegamente pela proteção de “Deus”. A máscara de “bom religioso” usada, psicologicamente, garantirá uma vaga no “paraíso”.
Por outro lado, a ideologia política deixa o indivíduo míope para a vida. Só importam assuntos ligados ao mundo material e a julgamentos morais correlatos, que tenham repercussão pública e influência social, ambiental e econômica. Pessoas (raça, sexo, gênero, classe social, profissão, renda…), natureza, coisas. O que for observável e passível de ser julgado, fica politizado. Atrai seguidores ou “haters”. Uma concepção holística da vida está fora de cogitação.
Na menos pior das hipóteses, quem está ideologicamente fechado dá a vida pelas ideias, baseando-se numa suposta superioridade moral. Aceitar o conflito é visto como sinal de “empatia” pelos mais fracos, vítimas do sistema, ou como “coragem” para lutar em prol de injustiçados ou perseguidos. A cegueira mental causada pela identificação total com ideias faz com que seus adeptos, convenientemente, separem a vida material da espiritual, como se houvesse uma parede de concreto entre elas. A nova ciência, pautada na física quântica e que demoliu essa crença da separação entre mundos, é colocada de escanteio. Daí, é um passo para o fanatismo. E “Deus que me perdoe, espere e reconheça meu valor”.
Por racionalizações, conflitos são justificados pela defesa aguerrida de ideias próprias. O povo fraturado sempre perde; o regime sempre vence. O status quo previsivelmente se perpetua. De tempos em tempos, com padrões de pensamentos e condutas se repetindo, não tem como o ciclo histórico não ser similar.
No íntimo, quem está ideologicamente apegado não quer resolver problemas ou viabilizar a paz verdadeira. Quer, sim, ter o prazer de dizer que sua ideologia é a melhor, a mais justa, a mais ética, a mais espiritualizada do que as adversárias. O dever de consciência é dever para com o ego, ora igualado à consciência. O resultado empírico, contrário a qualquer pretensão de justiça e paz, não faz diferença. Como exemplo, o Brasil de hoje, com seu sectarismo religioso e político conflagrado: no mínimo há meio século, continua classificado como “país em desenvolvimento”.
Jiddu Krishnamurti, no Livro da Vida (mensagem de 19 de fevereiro), há mais de 70 anos, fez uma constatação mais atual do que nunca. Leia com atenção o texto original abaixo e, na sequência, vamos desvendar por que caímos nessa armadilha.
A ideologia impede a ação (J. Krishnamurti).
“O mundo está sempre próximo da catástrofe. Mas agora parece estar ainda mais próximo. Observando a catástrofe que se aproxima, a maioria de nós a abriga na ideia. Achamos que essa catástrofe, essa crise, pode ser resolvida por uma ideologia. A ideologia é sempre um impedimento ao relacionamento direto, o que também impede a ação.
Queremos a paz apenas como ideia, mas não como realidade. Queremos a paz no nível verbal, ou seja, no nível do pensamento, que orgulhosamente chamamos de nível intelectual. Mas a palavra paz não significa paz. A paz só pode existir quando cessar a confusão que o homem criou. Estamos ligados ao mundo das ideias e não à paz. Buscamos novos padrões sociais e políticos, não a paz. Estamos preocupados com a reconciliação dos efeitos, e não em pôr de lado a causa da guerra.
Essa busca trará apenas respostas condicionadas pelo passado. E esse condicionamento é o que chamamos de conhecimento, experiência; os fatos recentemente alterados são traduzidos e interpretados segundo esse conhecimento. Então, há conflito entre o que existe e a experiência que foi acumulada. O passado, que é o conhecimento, estará sempre em conflito com o fato, que sempre está no presente. Portanto, isso não resolverá o problema, mas perpetuará a condição que o criou.”
Reflexão: o menu não é a comida
Você já percebeu como é fácil sentir raiva de alguém na internet, mas difícil resolver um problema real dentro da sua própria casa? Ou como falamos tanto sobre “paz mundial”, mas não conseguimos parar de brigar com nosso vizinho? Isso acontece por causa de um truque da nossa mente: nós trocamos a realidade pela ideia da realidade.
Para entender a profundidade do que Krishnamurti nos ensina, vamos usar duas metáforas simples.
1. A ilusão do restaurante
Imagine que você está faminto. Você entra em um restaurante e o garçom lhe entrega o cardápio. No papel, está escrito: “Hambúrguer suculento, grelhado no fogo, com queijo derretido”.
Você lê aquilo e fica satisfeito. Você discute com a mesa ao lado sobre qual descrição de hambúrguer é a mais poética. Você defende a descrição do cardápio com a sua vida.
Mas você nunca come o hambúrguer.
Você sai do restaurante com fome, mas cheio de palavras.
A ideologia é o cardápio. A realidade (a fome, a guerra, a dor, o amor) é a comida.
Nós estamos tão viciados em ler o cardápio (nossas teorias políticas, nossos dogmas religiosos, nossas opiniões) que esquecemos de nutrir a vida real. A palavra “paz” não acaba com a guerra, assim como a palavra “comida” não mata a fome.
2. O GPS desatualizado
Imagine que você está dirigindo e seu GPS (sua ideologia) diz: “Vire à direita agora. O caminho é seguro”.
Porém, seus olhos (o fato presente) veem que à direita existe um precipício enorme, pois a estrada caiu ontem.
O que a pessoa ideológica faz? Ela vira à direita. Por quê? Porque ela confia mais no mapa (no passado, no que disseram a ela) do que na realidade que está bem na frente do nariz dela. E quando o carro cai, ela culpa o precipício por estar no lugar errado, e não o GPS.
A armadilha do “deveria ser”
O texto nos alerta: a ideologia impede a ação.
Quando vemos um problema (uma crise no país, uma violência), imediatamente buscamos uma “ideia” para resolver.
“Precisamos de mais conservadorismo!”
”Precisamos de mais progressismo!”
“Precisamos de mais religião!”
Todas essas respostas vêm do passado. São velhas receitas. Ao tentar encaixar um problema novo (vivo, dinâmico, presente) numa receita velha (morta, estática), criamos atrito. Criamos conflito.
O perigo é que, quando eu tenho uma ideologia, eu paro de olhar para você. Eu olho para o rótulo que colei na sua testa. Se o rótulo é “amigo”, eu perdoo tudo. Se o rótulo é “inimigo”, eu não escuto nada. Isso nos anestesia. Deixamos de sentir a dor do outro, deixamos de ver a confusão real, porque estamos ocupados demais defendendo nossas “caixas mentais”.
O convite à lucidez
A verdadeira inteligência não é acumular mais teorias. É a capacidade de olhar para o fato – seja ele a corrupção, a violência ou a sua própria raiva – sem os óculos coloridos da ideologia.
Quando você tira os óculos vermelhos, azuis ou verdes, você vê o mundo como ele é. Só quando vemos a bagunça como ela realmente é (e não como gostaríamos que fosse), é que podemos começar a arrumá-la. Esqueça o cardápio. Olhe para a fome. Esqueça o mapa. Olhe para a estrada. Isso é ação. Todo o resto é apenas adiar a solução.
Referências e sugestões de leitura
1) Anthony de Mello. Despierte (espanhol).
2) Byung-Chul Han. A Expulsão do Outro.
3) David Hawkins. Disolver el Ego (espanhol)
4) Don Miguel Ruiz Jr. Os cinco níveis de apego.
5) Eric Hoffer. Fanatismo e Movimentos de Massa.
6) Jiddu Krishnamurti. O Livro da Vida.
7) Ken Keyes Jr. Guia para uma consciência superior.




