O fogo, a espada e a guerra.

A revolução psicológica urge.

Renato R Gomes Administrador

Há uma famosa e enigmática passagem atribuída a Jesus, tanto no evangelho canônico [Lc 12:51-53] quanto no gnóstico, afirmando que o mestre não veio trazer a paz, mas, sim, a espada e a guerra.

O dito 16 do Evangelho Gnóstico de Tomé fala o seguinte: “Jesus disse: ‘As pessoas podem pensar que vim trazer paz ao mundo, mas, na verdade, vim trazer divisão à Terra — fogo, espada e guerra. Haverá cinco pessoas em uma casa; três estarão contra duas, e duas contra três. O pai estará contra o filho, e o filho contra o pai, e eles ficarão sozinhos.'”

Podemos presumir que tudo o que refere a Jesus pressupõe ter um sentido voltado à transformação do indivíduo “sem alma” (como classificava ironicamente Gurdjieff o homem “robótico” de hoje) em Ser humano; sentido voltado à sua “salvação”. Mas como alguém pode “se salvar” se não entende a mensagem, ou confunde sua interpretação de conveniência com o saber verdadeiro e capaz de libertar? Qual é a essência dessa mensagem? Como usá-la em nossas vidas no dia a dia, independentemente do contexto em que estivermos (familiar, social, profissional…)?

Bem objetivamente, penso que “trazer divisão à Terra” significa romper paradigmas sobre a vida em geral, e religiosos, em particular, que nos impedem de mudar, crescer, de evoluir como ser humano. Paradigmas que nos deixam estagnados. Medos, preocupações, incertezas e dúvidas que nos paralisam são indícios da relevância da mensagem do mestre e da necessidade de transformarmos nossa mentalidade.

“Fogo” simbolizaria a mensagem inovadora; o ensinamento psicologicamente revolucionário. “Espada”, o choque que a mensagem causa(rá) à mente fechada, já conformada e que se incomoda em reconhecer as incoerências do próprio ego, de seus hábitos e costumes, da forma reativa, automática e errônea de pensar. “Guerra” implicaria o conflito interno da pessoa, ao enxergar a necessidade de sua mudança, mas sentir medo, preocupação ou alguma pressão interna, que a façam  resistir, porque não consegue explicar o “conflito” pela lógica mensurável, do senso comum, do “ver para crer”.

Daí, haver confrontos em família ou grupos quaisquer – manifestando-se em brigas, separações e isolamentos – acaba sendo consequência natural do mudar, caso a pessoa assim decida. Relacionamentos conflituosos são nossos professores. Tiremos as lições e entremos no fluxo da Vida.

Vamos aproveitar essas ideias e aprofundá-las um pouco mais, por tocarem no cerne da questão. Sou admirador do estilo de Krishnamurti, com sua simplicidade, objetividade e riqueza. Com sua inspiração, se fossemos conversar, sentados num banco de praça ou num pequeno auditório com jovens e adultos, o papo poderia ser algo como o seguinte.

A conversa
“Vejam, senhores, as ideias iniciais soam muito penetrantes. A essência, de fato, não é captada por um sentido literal. Não trata de soldados marchando ou de queimar cidades. A ‘guerra’ como conflito interno e relacionamentos como professores são significados bastante precisos.
​Notemos a ideia de que a ‘espada’ é o choque na mente conformada. A maioria de nós não quer acordar; queremos apenas um sonífero melhor, uma religião mais confortável. Ninguém quer conflito, porque gera separação, isolamento. Mas agimos inconscientemente em busca de conflitos; queremos sempre “ter razão”. Jesus sabia que a verdade é perigosa para a ilusão; para o nosso mundo subjetivo de ilusão, chamado de ‘realidade’.
​Agora, vamos olhar para isso juntos, de forma bem simples, como se estivéssemos descascando uma fruta para ver o que há dentro.”

Desmistificando Jesus
​”Escutem bem. A gente cresce ouvindo que Jesus, ou qualquer grande sábio, veio trazer paz, tapinhas nas costas e fazer todo mundo se sentir seguro, certo? Mas esse Dito 16 é um balde de água fria na literalidade. É um choque na mentalidade engessada. E precisa ser.
Imaginem um quarto totalmente escuro e bagunçado. Vocês estão lá dentro, confortáveis porque não veem a bagunça. De repente, alguém acende uma luz fortíssima (o fogo). O que acontece? Você vê a sujeira, a desordem, os móveis quebrados. A luz não criou a bagunça; apenas a revelou.

A espada e a divisão
Essa luz é a Verdade ou a Percepção Pura. Quando você começa a ver as coisas como elas realmente são — e não como seus pais, sua igreja ou o TikTok dizem que são —, você corta os laços com a mentira. Isso é a espada em ação.
Se você percebe que a competição é estúpida, que o nacionalismo separa as pessoas, você já não faz parte da ‘turma’. Você se separou psicologicamente da manada.

A guerra na casa (3 contra 2)
A ‘casa’ é a sua mente, mas também é a sua família e seus amigos. Pensem num grupo de amigos onde todos bebem para fugir da realidade ou fofocam para se sentirem superiores. Se um de vocês para e diz ‘Isso é bobagem, não vou mais fingir’, o que acontece? A ‘paz’ falsa do grupo acaba. Eles vão se sentir julgados pelo seu silêncio. Eles vão atacar você.

O pai (o velho, a tradição, o passado) vai brigar com o filho (o novo, a descoberta). Isso acontece dentro de você o tempo todo. Uma parte de você quer segurança e aprovação (o velho); a outra quer ser livre e verdadeira (o novo). Isso é a guerra eclodindo.

Ficar sozinho
Jesus diz que ‘eles ficarão sozinhos’. Parece triste? Não deveria.
A maioria de nós é de ‘segunda mão’. Pensamos o que os outros pensam; queremos o que os outros querem. Somos cópias. Somos repetidores. Não nos diferimos muito dos papagaios.
Quando você passa por esse ‘fogo’ e usa essa ‘espada’ para cortar as ilusões, você se torna íntegro.
Estar ‘sozinho’ aqui não é solidão dolorosa. Atentem para a palavra inglesa alone: sua origem vem de all one (todo um, totalmente um, inteiramente um). Significa que você não está mais fragmentado, dividido. Você é como é, inteiro, sem precisar se apoiar em muletas psicológicas, gurus ou dogmas.

Resumo da ópera
‘Vir trazer a divisão’ significa que a Verdade não faz acordos com a mentira. Para ser verdadeiramente pacífico, primeiro você tem que destruir tudo o que é falso dentro de si. E isso exige coragem para ficar de pé, sozinho, sem a aprovação do grupo.”

O “Próximo Passo”
​Diante desse possível esclarecimento sobre a metáfora do “conflito” trazida por Jesus, como usar essa Verdade no dia a dia? Por exemplo, como conectar a psicologia do autoconhecimento e o direito eticamente pensado e aplicado?
Vamos, em breve, explorar como esse “conflito interno” (a guerra de que Jesus fala) afeta a tomada de decisão ética no Direito.

Referências e sugestões de leitura
Jiddu Krishnamurti: A Primeira e Última Liberdade e Pense Nisso.
Jean Yves-Leloup: O Evangelho de Tomé.
Elaine Pagels: Os Evangelhos Gnósticos.