Há um ensinamento de Jesus (do qual particularmente gosto bastante), transmitido no Sermão da Montanha (Mt 5:39), muito malcompreendido pelo senso comum:
“Eu, porém, vos digo que não resistais ao mal; mas, se qualquer te bater na face direita, oferece-lhe também a outra;”
O que significa “não resistir ao mal”? Significa nos conformarmos com maldades, calados, omissos, coniventes, lenientes? Implica nos submetermos ao arbítrio alheio ou ao totalitarismo estatal, sem nos darmos o direito de driblá-los com inteligência, sem violência, em respeito ao amor próprio? O “mal” se refere a acontecimentos externos, comportamentos dos outros ou quaisquer fatos da vida que estão fora de nosso controle?
Penso que o “mal” não é algo externo, objetivo, captável pela visão ou audição. Até porque, na vida, não existem acasos e coincidências, nem injustiça divina ou cósmica. O “mal”, pelo contrário, é interno, sinalizado pelas emoções negativas repentinas, pelos maus sentimentos que perduram, pelo mal-estar decorrente de falsas crenças, de experiências tidas por dolorosas, de pensamentos automatizados e habitualmente equivocados.
O “mal” advém da incompreensão, ou inversão, da célebre frase, atribuída a Sócrates, “Só sei que nada sei”. Quando alguém julga tudo e todos, ou tem opinião para qualquer coisa, do “alfinete ao foguete”, faz exatamente o oposto: não reconhece a própria ignorância; não lida bem com o não saber, com o desconhecido, com o pensamento “o que vão pensar de mim se eu ficar quieto, sem opinar?”. Daí, falar sobre marimbondo ou física quântica, ou algo jamais lido ou estudado, aparenta um modo de agir inconsciente para a pessoa se sentir acolhida, vista como “alguém” merecedor de atenção. A sensação de “estar isolado”, de “ser diferente” da maioria, gera um incômodo íntimo.
O mal é fruto da confusão entre “o que é” e o que “deveria ser”, segundo nossos padrões morais.
A observação do que é
Aqui está o coração da questão humana. Quando dizemos que o “mal” são os nossos julgamentos e a ruminação mental que se segue, percebemos que o inimigo não está lá fora, mas na estrutura do próprio pensamento.
No estilo de Krishnamurti, vamos olhar para isso juntos, não como quem aceita uma teoria, mas como quem investiga um fato.
Perceba: ficamos presos cognitivamente, resistindo a mudar o ponto de vista. O que é essa resistência? Krishnamurti diria que a resistência é o próprio “eu”, o ego. O “eu” é feito de memórias, de experiências passadas, de preconceitos e de imagens que construímos sobre nós mesmos e sobre os outros.
Quando um fato ocorre — alguém nos ofende, ou algo sai errado —, esse fato entra em choque com a imagem que fizemos dele (nosso julgamento). O conflito não é o evento em si. O conflito é o atrito entre o que aconteceu e o que eu acho que deveria ter acontecido.
Compreendermos que a raiz do mal está latente em nosso automatismo do julgar, fazendo com que, sem a menor noção, igualemos “fatos” e “conclusões pessoais de cunho moral”, coloca-nos em alinhamento profundo com a verdade psicológica, íntima, libertadora. Nossa mente se abre a possibilidades de se purificar de pensamentos autodestrutivos. O “mal” a que Jesus se referia, nessa visão, não é uma força demoníaca externa, mas a violência interna do conflito.
Ao julgar, separamo-nos do fato. Ao tentar “consertar” o pensamento ou lutar contra ele, damos energia a ele. “Não resistir” não significa ser passivo ou aceitar injustiças sociais de cabeça baixa. Significa não criar um conflito psicológico com o momento presente. Se sentimos raiva, a resistência é dizer: “Não devo sentir raiva; sou uma pessoa boa”. Isso é guerra psicológica. A não resistência é olhar para a raiva, abraçá-la sem julgá-la, sem dar nome a ela. Quando observamos a raiva sem a resistência do julgamento, ela floresce e murcha naturalmente, sem deixar resíduos. Ela não vira depressão. E depressão, muitas vezes, denota a exaustão de uma mente que lutou contra si mesma, contra seus julgamentos e contra a realidade por tempo demais.
Explicando a um jovem: a arte de não criar paredes
Se tivesse que explicar isso a um adolescente, usando a simplicidade que a verdade exige, diria algo assim:
Imagine que você está em um rio com uma correnteza forte. O “mal” de que falam não é a água, nem as pedras no fundo. O “mal” é a sua tentativa desesperada de nadar contra a correnteza ou de segurar a água com as mãos fechadas. Vamos imaginar uma situação na escola ou nas redes sociais.
Alguém fala besteira sobre você. Isso é um fato. Aconteceu. As palavras foram ditas.
Agora, observe o que sua mente faz imediatamente. Ela diz: “Ele não podia ter dito isso! Ele é um idiota! Tenho que me defender! O que os outros vão pensar?”
Isso é o que chamamos de resistência.
Quando você resiste, você se torna um muro sólido. Se alguém joga uma bola de tênis (a ofensa) contra um muro, a bola bate e volta com força (a reação automática). O barulho é alto. O impacto é forte. Você fica remoendo aquilo o dia todo. Você se sente mal. Você criou um problema que dura horas, talvez dias, por causa de uma frase que durou três segundos.
Jesus e os grandes sábios sugerem algo radical: e se você não for um muro? E se, quando a ofensa vier, você for como o vento ou como o espaço vazio? Se alguém joga uma pedra no espaço vazio, a pedra atinge alguma coisa? Não; ela passa direto. Não há choque. Não há barulho.
”Não resistir ao mal” significa simplesmente não transformar um momento sentido como desagradável em um filme de terror na sua cabeça. Quando você julga, critica e odeia o que aconteceu, você está pegando aquela pedra e batendo na sua própria cabeça repetidamente.
Se você sente inveja, não pense “não posso ter inveja”. Apenas “olhe” para ela e aceite-a naturalmente: “Ah, estou com inveja”. Não é pecado; é humildade; é autoconsciência.
Se sente raiva, não lute; sinta. Quando você não luta contra o que sente e não julga o que o outro fez, a mente silencia. E uma mente quieta fica imensamente forte, porque ela não desperdiça energia lutando contra fantasmas. Isso é a verdadeira inteligência. É como nas artes marciais: no jiu-jitsu, você não troca força com alguém mais forte; usa a força do adversário a seu favor. No karatê, você não para o soco do oponente com o rosto; você flui com ele, se esquiva, e o soco perde a força no vazio.
“Não resistir ao mal” é liberdade em essência. Mas queremos de fato ser livres?





