Crenças: fuga dos fatos

O real pode não ser o que você pensa que é.

Renato R Gomes Administrador

Fala-se muito que devemos ser “realistas”. Considerando julgamos tudo e todos, instante a instante, sem notarmos que o que chamamos de “realidade” é o nosso próprio julgamento subjetivo de fatos e informações que nossas mentes selecionam, podemos concluir que “realidade” é a visão subjetiva em comum que temos a respeito dos acontecimentos, por avaliarmos de modo similar aquilo que olhos e ouvidos captam. De cem indivíduos, com valores parecidos, submetidos à mesma influência educacional, social, cultural…, 99 adquirirão padrões mentais e de comportamento equivalentes. Obviamente, praticamente todos enxergarão a “realidade” sob consenso, não percebendo que esta não passa de um julgamento individual dos fatos, unanimemente compartilhado. “Realidade” é julgamento; julgamento é subjetividade; subjetividade não é fato, mas imaginação, ilusão, por mais “real”, psicológica e emocionalmente impactante que seja.

Partindo dessa “realidade” como se fosse algo objetivo e inquestionável, formamos nossas “certezas”. Tais “certezas” passam a justificar nossas crenças. E estas embasam e reforçam nossos hábitos inconscientes de julgar tudo a que temos acesso, sejam coisas, fatos, pessoas ou informações. Resultado óbvio: vemos seletivamente, considerando o que confirma a nossa “realidade”, ignorando o que não nos for conveniente. Gostamos de segurança psicológica, de estar “certo”. E o ciclo vicioso se perpetua: pensamentos automáticos, comportamentos padronizados, consequências previsíveis. Paradoxalmente, ficamos indignados quando situações indigestas vão se eternizando, pela consumação das “injustiças” que mais repudiamos. Daí, fica fácil entender por que muitos associam vida a sofrimento.
Vale então questionar: é possível que o viver seja naturalmente empolgante?

No Livro da Vida (mensagem do dia 9 de fevereiro), do filósofo Jiddu Krishnamurti, ele faz um convite à reflexão:

“A crença proporciona entusiasmo? O entusiasmo pode se sustentar sem uma crença? Ele é minimamente necessário ou é um tipo diferente de energia, de vitalidade? A maioria de nós tem entusiasmo por uma coisa ou outra. Somos muito apaixonados, entusiasmados por concertos, exercícios físicos ou até por um piquenique. A menos que isso seja alimentado por uma coisa ou outra a todo momento, acaba desvanecendo e passamos a ter um novo entusiasmo por outras coisas. Há uma força autossustentável, uma energia que não depende de uma crença? Outra questão é: necessitamos de algum tipo de crença? E, se isso for verdade, por que ela é necessária? Esse é um dos problemas envolvidos. Não necessitamos crer que a luz do sol existe, nem as montanhas e os rios. Não necessitamos crer que nós e nossos cônjuges brigamos. Não temos de crer que a vida é um mistério terrível, com sua angústia, conflito e constante ambição – isso é um fato. Mas exigimos uma crença quando queremos escapar de um fato para uma irrealidade.”

Como diria Krishnamurti, vamos investigar isso juntos, não como professor e aluno, mas como dois amigos caminhando lado a lado, observando a mesma paisagem. A verdade não é algo que eu lhe dou; é algo que percebemos quando removemos a poeira dos olhos.
​O que podemos “ver” nas entrelinhas desse texto? Uma metáfora pode facilitar a compreensão.

A chama e o combustível
Imaginemos uma fogueira. A maioria de nós precisa jogar madeira o tempo todo (crenças, estímulos, novidades) para manter o fogo do entusiasmo aceso. Se a madeira acaba, o fogo morre e ficamos no tédio ou no vazio. Cabe perguntar: existe um fogo que queima sem precisar dessa madeira externa?
O texto aponta uma distinção fundamental: crença não é fato.

O fato (o que é)
O sol que queima nossa pele, brigamos com o cônjuge, a angústia que sentimos no peito, e por aí vão infinitos exemplos. Não precisamos acreditar nessas coisas. Elas estão lá, inegáveis, presentes. Ninguém precisa ter “fé” que está chovendo quando a água molha o rosto.

A crença (a fuga)
A crença surge quando o fato é doloroso ou difícil. Como não queremos lidar com a angústia real (o fato), inventamos uma história de que “tudo vai dar certo no futuro”ou que “há um propósito maior” (a crença). Dizem que “temos que ter esperanças”. Só não nos ensinam como lidar com ansiedades, frustrações e negatividades quaisquer, por esperarmos indefinidamente, até acontecer o que “dever ser” ou a “justiça ser feita”.

​Em suma, a crença é um refúgio psicológico. Só buscamos esse refúgio quando não conseguimos encarar a realidade crua da vida como ela é. Na prática, “viver” tornou-se refugiar-se, porque não aceitar os fatos (o que é) ou resistir ao mal (contaminar-se pelo próprio julgamento) virou regra. Crenças impedem o saber; deixam-nos satisfeitos com algo pronto, conveniente, dado, copiado. Eis a causa do problema da falta de empolgação: o desconhecimento de como o mecanismo da mente funciona (ou de como as crenças limitam o potencial da mente).

​Se estivéssemos conversando com Krishnamurti junto à natureza, dá para imaginar ele nos dizendo:
“Veja, senhor: quando você aceita a autoridade de outro – seja um padre, um político, ou até mesmo eu, Krishnamurti – você parou de olhar para a vida. Você trocou a sua visão direta pelos óculos de outra pessoa.”

A crença cria divisão e julgamento. Se eu acredito que sou “o bom” e o outro é “o mau”, parei de ver o ser humano à minha frente; vejo apenas a imagem que minha crença projetou.

​Vale um alerta sutil: apenas tenhamos cuidado para que a ideia de “não ter crenças” não se torne, ela mesma, uma nova crença ou uma nova identidade de superioridade. A liberdade não está em dizer “eu não creio”, mas em estar constantemente atento, momento a momento, aos movimentos do próprio pensamento.

Explicando a um jovem o “escapar do fato para uma irrealidade”
Batendo papo com um adolescente, a ideia (bastante complexa para um jovem, pressionado socialmente para “ser alguém na vida”) poderia ser explicada da seguinte forma:

​”Imagine que você tirou uma nota muito baixa em matemática e sabe que não estudou nada. Esse é o Fato. É ruim, dá um aperto no estômago; porém, é real.
​Mas, encarar que você foi irresponsável, dói (a propósito, nos dias de hoje, qual adolescente tem a consciência da autorresponsabilidade? Raríssimo; a praxe é culpar ou arranjar pretextos). Então, sua mente rapidamente cria uma história: ‘O professor me odeia’ ou ‘Matemática não servirá para nada na minha’. Essa história é a crença (a irrealidade).
Por que você criou essa crença? Para não ter que sentir a dor da responsabilidade (o fato).

O fato: ‘Eu sinto solidão e não sei fazer amigos.’
A fuga (crença): ‘Eu sou um lobo solitário; sou muito inteligente; as pessoas comuns não me entendem.’
​Percebe? Exigimos uma crença (uma mentira confortante) sempre que a verdade sobre nós mesmos é desconfortável demais para ser olhada de frente. A crença funciona como um filtro de Instagram na vida presente: ela esconde as espinhas, mas não cura a pele.
No texto, Krishnamurti nos convida a largar o filtro e olhar no espelho, pois só lidando com o que é fato podemos mudar.”

Referências e sugestões de leitura

Jiddu Krishnamurti. Comentários sobre o viver (I, II e III).