Justiça está na ação; resultado é consequência. Ou, como dizem os mestres, não existe justiça externa se não houver ordem interna. As injustiças a que assistimos diariamente são fruto das lamentáveis semeaduras individuais. Os resultados decorrentes, que afetam o coletivo e se refletem sobre vida particular do indivíduo, não teriam como não serem repulsivos, trágicos ou desastrosos. Não fomos educados para lidar inteligentemente com circunstâncias imprevisíveis e indesejadas. O homem de hoje é reativo, tendencioso, “automatizado”. É puramente mental, com a agravante de estar com a mente enferrujada.
O que as pessoas não entendem – por não poder ser aferido pela lógica ou pela tal “ciência” materialista – é que o “semear” não se limita meramente ao “agir”: engloba também pensamentos, sentimentos, emoções, intenções e atitudes quaisquer. Se não houver sincronização entre pensamento, intenção, sentimento e ação, pode(re)mos, inconscientemente, estar plantando “espinhos”, na “certeza” de que colheremos “rosas”.
Imaginemos que 99% de 220 milhões de brasileiros (ou de 8 bilhões da humanidade) desconheçam completamente essa peculiaridade da Lei da Semeadura (ou Lei do Retorno), ignorem regra geral os sinais que os sentimentos negativos lhes passam, e ajam motivados por eles (raiva, medo, revolta, culpa…). Se olharmos pelo retrovisor histórico, as escolhas e decisões, compreensivelmente – salvo raras e belas exceções -, não foram das melhores. E, até então, não mudou quase nada. Basta analisarmos as injustiças consumadas a cada momento, no Brasil ou no mundo. Todas elas, meras consequências; o outro lado da moeda do “semear e colher”. Controlamos as ações; os efeitos, tal como irmãos siameses, nascem com elas, estando, porém, fora de nosso controle.
Levemos essa ideia para o ambiente do Direito. Se o profissional da área (o juiz, o advogado, o promotor) está em “guerra” interna – dividido entre o que é certo e o que lhe traz vantagem, prestígio ou segurança -, sua decisão será inevitavelmente corrupta, mesmo que ele siga a “letra da lei”. A “espada” (a verdade descoberta) que deveria cortar a mentira acaba cortando a justiça.
Dois casos práticos e notórios em suas épocas ilustram o uso da lente de que o conflito interno (medo/ambição versus fato) é a raiz do erro ético. O primeiro caso, uso de lente desfocada; o segundo, de lente sintonizada.
Caso um. O exemplo desastroso: o caso Brumadinho (a falha da integridade)
Vamos olhar para o rompimento da barragem em Brumadinho (2019). Na linha de Krishnamurti, a tragédia física foi precedida por uma tragédia psicológica.
O cenário: havia laudos técnicos, havia engenheiros e gestores jurídicos. A “lei” e as “normas” existiam.
O conflito interno (a guerra): de um lado, o fato: “A barragem não é segura”. Do outro lado, o desejo, o medo: “Precisamos manter a produção. Preciso garantir meu bônus. Tenho medo de ser demitido se apontar o problema. A empresa não pode parar”.
A tomada de decisão: a mente dividida e acomodada escolheu o conforto imediato, em vez da verdade. Houve assinatura em um laudo de estabilidade que não correspondia à realidade.
A análise
Consegue perceber que a “guerra” interna venceu? O indivíduo estava em conflito: “Eu sei a verdade, mas o sistema me pressiona”. Ao ceder à pressão (do ego, medo, ganância), ele se tornou fragmentado. Ele não estava “sozinho” (inteiro); ele era apenas uma peça da engrenagem. A decisão de ignorar o risco foi uma tentativa de silenciar o conflito interno para não ter que enfrentar a “espada” da mudança drástica (parar a mina). O resultado foi a morte e a destruição.
Caso dois. O exemplo exemplar: Sobral Pinto e a defesa de Harry Berger (a integridade solitária)
No Brasil, temos um exemplo clássico que encarna o homem que “traz a espada e fica sozinho”, no melhor sentido: Heráclito Fontoura Sobral Pinto, em evento ocorrido durante a ditadura Vargas (Estado Novo).
O cenário: Harry Berger, militante comunista, estava preso em condições sub-humanas, torturado, vivendo no esgoto. O governo e a sociedade (a “casa”) odiavam comunistas. Ninguém queria defendê-lo.
A ação (a espada): Sobral Pinto, um católico fervoroso e conservador (portanto, ideologicamente oposto ao seu cliente), assumiu sua defesa. Como a Constituição estava suspensa e não havia direitos humanos vigentes para “inimigos do Estado”, ele invocou a Lei de Proteção aos Animais.
A tomada de decisão: Ele argumentou que, se Berger não era considerado cidadão ou humano pelo Estado, ele era ao menos um animal, e a lei proibia maltratar animais.
A Análise
Vejam a beleza de um homem íntegro! Este homem não estava dividido. Ele não pensou: “Mas o que vão pensar de mim se eu defender um comunista?” ou “Vou perder clientes católicos”. Não havia conflito entre a crença dele e a humanidade dele.
Ele estava ‘sozinho’ contra o Estado, contra a opinião pública e até contra seus pares. Ele usou a “espada” (a inteligência jurídica cortante, afiada) para expor a hipocrisia do sistema. Ele trouxe a divisão: obrigou os juízes a decidirem se eram meros carrascos do regime, ou se reconheciam a lei.
Isso é a ética nascida do autoconhecimento. Ele não agiu por um código moral decorado, mas por uma percepção direta de que o sofrimento humano é sagrado, não importando o rótulo.
Síntese didática
Krishnamurti talvez dissesse ao estudante de Direito:
“A Lei é morta, mas você é a vida. O código penal é apenas papel e tinta; é a sua mente que dá vida a ele. Se a sua mente está confusa, cheia de medo ou ambição, você vai (dis)torcer a lei.”
O conflito vicia a prova: se você tem medo de desagradar o chefe ou o juiz, você já perdeu a ética. Você não está olhando para o fato (o que aconteceu); está olhando para a consequência; está preocupado com o seu ego (o que vai acontecer comigo?).
Ser “espada”: a decisão ética real muitas vezes vai causar divisão. Você vai ter que dizer “não” quando todos dizem “sim”. Se você busca a “paz” imaginária (concordância, tapinha nas costas), você será antiético. Se você aceita a “guerra” (o desconforto de ser íntegro), você fará Justiça.
Referências e sugestões de leitura
Hannah Arendt. Eichmann em Jerusalém. Um relato sobre a banalidade do mal.
Martha Beck. Por inteiro.
Michael Sandel. Justiça: o que é fazer a coisa certa.
Jiddu Krishnamurti. Pense Nisso.
John W.F. Dulles. Sobral Pinto: a consciência do Brasil.
Thomas Sowell. A busca da justiça cósmica.
Viktor Frankl. Em busca de sentido.





