A mentira confortável

Por que fugimos dos fatos e como a 'não resistência' pode nos libertar.

Renato R Gomes Administrador

Imagine um jogo; um jogo psicológico. Agora, desafiando-se mentalmente, tente compreender o seguinte texto:
“Por que as ideias se enraízam em nossas mentes? Por que os fatos não se tornam vitais – e sim as ideias? Por que as teorias, as ideias, tornam-se tão importantes, mais que o fato? Será que, por não conseguirmos entender o fato, não temos capacidade para isso? Ou será porque tememos enfrentar o fato? Por conseguinte, as ideias, as especulações, as teorias, são um meio de escapar do fato… Você pode fugir, fazer todo tipo de coisa… os fatos estão aí: o fato de que você está zangado, é ambicioso, é exageradamente ligado ao sexo e tantas outras coisas. Você pode dissimulá-las, transmutá-las – que é outra forma de dissimulação –, controlá-las, mas elas estarão todas dissimuladas, controladas e disciplinadas com ideias… As ideias não enfraquecem nossa energia? Não entorpecem a mente? Você pode ser engenhoso na especulação, nas citações, mas é obviamente uma mente entorpecida que cita, que leu muito e cita. …Você remove o conflito do oposto de um só golpe se convive com o fato, e assim libera a energia para enfrentar o fato. Para a maioria de nós, a contradição é um campo extraordinário no qual a mente é aprisionada. Eu quero fazer isso, mas faço algo inteiramente diferente; contudo, se enfrento o fato de querer fazer isso, não há contradição; desse modo, de um só golpe, elimino todo o sentido do oposto, e minha mente então se torna completamente interessada no que existe e com o entendimento do que existe.” [Krishnamurti. Livro da Vida. Mensagem de 15 de fevereiro]

Nós pensamos? Ou obedecemos?Constatação pessoal: a imensa maioria é controlada por uma espécie de “algoritmo mental” que precisa ser quebrado. Ele controla a vida de cada um quando estamos em plena ignorância. Ignorância, aqui, não se refere a nível de instrução ou cultura; refere-se à total ausência do momento presente. É o estado de quem vive ruminando memórias ou projetando um futuro imaginário e calamitoso.

A ignorância está na falta de autoconsciência. Está na perfeita confusão entre o ego e quem realmente somos. O “vigiai e orai” [Mt 26:41], tal como Jesus ensinou, torna-se impraticável, pois o ignorante – regra geral, também inconscientemente arrogante – não tem presença de espírito para vigiar a si mesmo.
Krishnamurti faz questionamentos desafiadores para quem nunca percebeu que pensa de modo automatizado, aprisionado a ideias preconcebidas e crenças limitantes. Pensar por meio de crenças acaba sendo, verdadeiramente, um não pensar. Equivale a um computador executando um software instalado, processando comandos de terceiros.
Crenças, dominando o funcionamento da mente, fazem com que pensamentos se convertam em julgamentos e, estes, em ações reativas. É uma programação que recebemos ao longo da vida: em casa, na escola, na religião. Somos condicionados – assim como os cachorrinhos que amamos – sem nunca nos darmos conta. A correria do dia a dia não cessa e, acelerados, preferimos ignorar tudo. Chegando em casa, a depender do bolso, o refúgio é a pinga, a cerveja ou o whisky com charuto.

Há dois milênios, Jesus disse para não resistirmos ao mal [Mt 5:39]. Psicologicamente, se considerarmos o “mal” como o conflito interno e a dor emocional, resistir a ele significa alimentar esse sofrimento com julgamentos e negação. O resultado é a reatividade e uma luta insana contra fatos já consumados. Daí, viver e sofrer viram sinônimos.
​Esta reflexão demanda lucidez. Vamos aprofundá-la em dois níveis: um diálogo direto sobre a essência e, em seguida, uma tradução didática para as novas gerações.

Parte 1. O diálogo (a perspectiva profunda)
A correlação entre a “automatização” de Krishnamurti e o “não resistais ao mal” de Jesus precisa ser sentida, não apenas entendida intelectualmente.
Quando dissemos que “pensar por meio de crenças é um não pensar”, expusemos a tragédia da mente moderna. Não estamos vivendo; estamos “sendo vividos” pelo nosso condicionamento. O cérebro roda um script antigo (medo, cultura, traumas) e achamos que esse loop repetitivo é nossa personalidade. Não é; é apenas memória reagindo ao presente.
A leitura psicológica de Jesus é libertadora.
Normalmente, interpreta-se “não resistir” como passividade covarde. Mas, à luz da observação direta, o “mal” é o conflito entre o fato (o que é) e a ideia (o que deveria ser).
​O fato : “Estou com raiva.”
A ideia (resistência): “Eu não deveria sentir raiva, porque sou espiritualizado.”
​O resultado: dissimulação e neurose.
Ao resistir ao fato, nós o alimentamos. Quando você para de lutar contra o fato de estar com raiva ou triste, a energia que gastava na luta fica livre. Você se rende à verdade do momento, e essa verdade liberta.

Parte 2. O filtro e a realidade (para entender de vez)
Vamos usar uma metáfora para simplificar essa ideia aparentemente radical.
1. A selfie e o filtro
Imagine que você tira uma selfie. A foto original mostra uma espinha, uma olheira, a luz real. O que a maioria faz? Aplica um filtro. O filtro suaviza, esconde o “defeito”.
Nós fazemos isso com a vida. Viciamo-nos no filtro (a ideia, a desculpa, a teoria) e desaprendemos a lidar com a foto original (o fato, o acontecimento).
Por que, quando sentimos inveja, fazemos questão de dizer “não sou invejoso”? Porque o fato cru dói. A ideia (“sou uma boa pessoa”) é confortável. Usamos ideias como escudo para não sermos tocados pela vida.
2. O bug no algoritmo
Você já notou que muitas vezes não pensa, e só reage? Alguém o critica; você sente raiva; por fim, você xinga. Roboticamente, você rodou o programa “eu não levo desaforo para casa”.
Isso é um algoritmo. É um robô biológico processando dados; jamais um ser humano vivendo livremente.
3. O segredo do “não resista”
O “mal” não é o vilão do filme. O mal é a nossa ansiedade ou medo no agora.
O que fazemos normalmente? Lutamos contra: “Não posso sentir isso!”
Pense numa areia movediça: quanto mais você se debate, mais afunda. A resistência drena sua bateria.
4. A cirurgia mental
A revolução acontece quando paramos de brigar. Estamos com raiva? Ok. O desafio: olhar para a raiva. Não dizer que ela é feia, nem tentar se convencer de que ela é justa. Apenas olhar.
Ao encarar o “monstro” de frente, sem filtro e sem briga, acontece um “bug” no sistema: o conflito vai se dissolvendo, até desaparecer. A mente fica silenciosa e inteligente. Saímos do piloto automático e assumimos o comando de nossa vida. O ego torna-se um aliado, e não mais nosso inimigo.

Referências e Sugestões de Leitura
​(para quem quer sair da Matrix)
Anthony de Mello. Despierta (espanhol) ou O Despertar (português).
Aldous Huxley. Admirável Mundo Novo.
Byron Katie. Ame a Realidade (O método prático de questionamento).

Eckhart Tolle. O Poder do Agora.
Jiddu Krishnamurti. A Primeira e Última Liberdade.
Jiddu Krishnamurti. O Livro da Vida.