Lendo o livro A Sociedade do Cansaço (Byung-Chul Han), uma passagem me remeteu a dois outros: Normose (Pierre Weil, Jean Yves-Leloup, Roberto Crema) e Admirável Mundo Novo (Aldous Huxley):
“A ira é uma capacidade que está em condições de interromper um estado e fazer com que se inicie um novo estado [grifo no original]. Hoje, cada vez mais ela cede lugar à irritação ou ao enervar-se, que não podem produzir nenhuma mudança decisiva. (…) A crescente positivação do mundo torna-o pobre em estados de exceção. (…) a positivação geral da sociedade hoje absorve todo e qualquer estado de exceção. Assim o estado de normalidade torna-se totalitário. Justo a crescente positivação do mundo desperta muito atenção para conceitos como “estado de exceção” (…).”
Han fala de “estado de exceção”. Mas não no sentido da China de Mao ou qualquer aberração similar, mas pelo fato de as pessoas irem se conformando com o tido por “normal”, perdendo a capacidade de indignar-se e buscar soluções que levem a mudanças. Nos “estados de exceção”, as pessoas, racionalizando para ver o “positivo” no “normal”, passam a encarar os maus sentimentos duradouros como justificáveis. Por exemplo, a emoção intensa da ira seria abafada pela “positividade”, sendo substituída por uma irritação ou um leve enervar-se. A emoção, em vez de ser canalizada para o momento presente, impulsionando à ação, é neutralizada.
Han diz que a visão positiva de tudo absorve esses estados de exceção (de emoções agudas), drenando a energia e o potencial de transformação humano. A ira reprimida se transforma em sentimentos suportáveis, prolongados e perenes de irritação ou do enervar-se, fazendo que tudo seja visto como “normal” (“bom”).
Esse estado de positividade criticado por Byung não deixa de representar uma espécie do estado atual de normose (a patologia da normalidade), tal como descrito por Pierre Weil, Jean Yves-Leloup e Roberto Crema.
No caso da épica distopia escrita por Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo), em que a vida humana se desenvolve pretensamente num contexto 100% controlável, como se homens fossem máquinas e sentimentos fossem inúteis, a patologia da normalidade (normose) e a positividade tóxica da sociedade de desempenho atingem o ápice: ápice da insanidade mental.
As três ideias conjugadas contribuem para a construção sutil e mascarada de um Estado Totalitário para “o bem” das pessoas (tratadas como idiotas por natureza, incapazes de escolherem ou decidirem por si), sempre tuteladas por “sábios” que “zelam” pela dignidade humana. Controle e limites para tudo e todos – salvo para os “tutores” – viram condição fundamental para a “democracia”.
Compreensível que, no contexto de hoje, essa “positividade negativa”, fomentadora de uma “normalidade” mentalmente doentia, faça com que as ideias politicamente corretas, impostas “de cima para baixo”, se normalizem com o tempo. O que antes era sapo, pelo beijo da princesa, torna-se príncipe. E ai de quem ousar questionar a “princesa” ou contrariar o “príncipe”! A liberdade de expressão, o expressar-se como essência humana, tende a ser o primeiro pilar a tombar frente à ideologia dominante.
Vamos desenvolver um pouco mais essas ideias brevemente semeadas, sem qualquer apego a teses ou ideologias. Afinal, por trás de todo problema, há mensagens de valor para enriquecer o nosso Ser.
A revolução do “não”: a liberdade em tempos de máquinas
Se quisermos compreender o que está acontecendo com a mente humana – e com a mente do jovem de hoje – precisamos abandonar o peso das palavras difíceis e olhar para a realidade nua e crua.
1. A tirania do “sim” e o homem-máquina
Imagine que você seja um celular ligado 24 horas. Você recebe notificações, vibra, acende e responde instantaneamente. Você nunca desliga. O filósofo Byung-Chul Han diz que, ao vivermos assim, nos tornamos máquinas de desempenho.
O computador calcula mais rápido que o cérebro humano por um motivo simples: ele é um idiota total. Ele não tem a capacidade de hesitar, de parar ou de recusar. Ele apenas diz “sim” aos dados, e os processa. A sociedade atual quer que você seja exatamente assim: uma engrenagem lisa, sem atrito, incapaz de dizer “não”.
Daí o porquê de ter me lembrado da distopia de Aldous Huxley, em Admirável Mundo Novo. Lá, ninguém sofre, mas ninguém é livre. As pessoas são drogadas por prazeres constantes e pela ilusão de que tudo está perfeito. Hoje, a nossa droga é a hiperatividade, o medo de não sermos produtivos ou de sermos “cancelados”. Se você apenas aceita automaticamente tudo o que chega – ordens, estímulos, crenças, dogmas, ideias, argumentos, modas -, você perde sua alma. Está aparentemente livre de “negatividade”, mas cheio de uma “positividade” mortal que o transforma num autômato.
2. O Brasil e a “jaula de ouro”: a bondade imposta
Olhemos agora para o cenário que nos cerca, aqui no Brasil. Vivemos uma espécie de “normose” – um conceito de Pierre Weil que descreve a doença de ser normal em uma sociedade doente.
Perceba como ideias consideradas “politicamente corretas” vêm sendo impostas de cima para baixo, institucionalmente. Dizem que é para o “bem”, para a “inclusão”, para a “verdade”. Mas nos perguntemos: a virtude pode ser obrigada?
Quando o Estado ou a pressão social definem o que é a “linguagem correta”, ou criam monopólios sobre o que é “fake news”, ou quando você é socialmente “crucificado” por pensar diferente da manada, isso não é bondade: é adestramento. É como um pássaro numa gaiola de ouro: o dono diz que lá dentro é seguro e, lá fora, perigoso. O pássaro pode até cantar, mas não é livre, porque perdeu o céu.
Essa “positividade” tóxica cria uma sociedade onde a liberdade de expressão morre silenciosamente frente a uma ideologia dominante. Criam-se tutores “sábios” para nos dizer o que pensar, tratando o cidadão como uma criança incapaz. “Sábios” que, nem em sonho, podem ser equiparados aos “reis filósofos” de Platão! Infelizmente.
3. A grande armadilha: a irritação vs. a ira real
Aqui chegamos ao ponto mais delicado, onde a maioria dos “despertos” escorrega.
Ao perceber todo esse controle e hipocrisia, o que fazemos? A maioria reage com irritação. Você lê as notícias horríveis, compartilha-as com raiva, deseja o mal aos “culpados”, vive enervado e discute violentamente na internet.
Cuidado. Han nos alerta: a sociedade moderna permite a irritação, mas teme a ira verdadeira.
A irritação (reação) é barulhenta e passiva. Quando você vive compartilhando o horror e destilando ódio, você está apenas alimentando o algoritmo. Você se torna uma bateria que fornece energia para o mesmo sistema que diz combater. O seu ódio prende a sua atenção na tela, adoece o seu fígado, e não muda nada. Você acha que é um revolucionário, mas é apenas uma engrenagem enferrujada, rangendo.
A ira/negatividade (ação) é a capacidade soberana de parar. É o poder da “negatividade” no sentido filosófico: a potência de não fazer.
4. O caminho da liberdade
Portanto, nós, que buscamos a verdade, precisamos entender a diferença vital para não cairmos na armadilha do ressentimento: a verdadeira liberdade não é sair quebrando bancos ou viver amargurado, compartilhando desgraças no grupo da família, de amigos ou mesmo com desconhecidos, com o pseudo-objetivo de “levar esclarecimentos”. Isso é a “falsa revolta”, uma reação mecânica que mantém você preso ao nível do problema. Se a sua “luta pela liberdade” tira a sua paz e a sua capacidade de amar, o sistema já venceu você, pois colonizou a sua mente com o ódio.
A verdadeira revolução é o silêncio interior que recusa a hipocrisia. É a capacidade de olhar para o celular e não desbloqueá-lo. É ouvir a ideologia da moda e não repeti-la como um papagaio, nem atacá-la com fúria cega, mas simplesmente não participar dela.
Não sejamos os ingênuos que aceitam tudo (a positividade tóxica), nem os amargos que reagem a tudo (a irritação crônica).
Sejamos seres humanos livres. A liberdade começa quando nos recusamos a odiar, tanto quanto nos recusamos a obedecer ou replicar cegamente. Manter a mente afiada para ver a mentira, mas o coração limpo para não se tornar parte dela. O ato mais revolucionário hoje é mantermos a sanidade e a capacidade de dizer um “não” sereno, firme e inegociável, “virando as costas” para o imprestável.
Referências e sugestões de leitura
Aldous Huxley. Admirável Mundo Novo.
Byung-Chul Han. A Sociedade do Cansaço.
Jiddu Krishnamurti. Seu Universo Interior.
Pierre Weil, Jean Yves-Leloup e Roberto Crema. Normose.




