“Autoconhecimento ativo”

Liberte-se do passado.

Renato R Gomes Administrador

Todos os mestres, cada um valendo-se da sua linguagem e do estilo próprio, deixaram direta ou implicitamente a mensagem: sem autoconhecimento, não há “salvação” individual.
Krishnamurti, por exemplo, falava em “autoconhecimento ativo”. Sem autoconhecimento, viveremos sempre na ignorância e ilusão.
No Livro da Vida, texto escrito para o dia 25 de janeiro, ele diz o seguinte:

“Sem o autoconhecimento, a experiência gera ilusão; com o autoconhecimento, a experiência, que é a resposta ao desafio, não deixa um resíduo cumulativo como memória. O autoconhecimento é a descoberta contínua das maneiras do self, de suas intenções e buscas, de seus pensamentos e aspirações. Nunca pode existir “a sua experiência” e “a minha experiência”; o próprio termo “minha experiência” indica ignorância e aceitação da ilusão.” 

Presumidamente, muito poucas pessoas nos dias atuais, tão conturbados por confusões, conflitos e violências de todos os tipos (física, emocional, energética, espiritual…), compreende(ria)m esse texto. Regra geral, não há interesse pelo autoconhecimento. O que importa para a massa sofredora é identificar “culpados” e “crucificá-los”.  O pensamento-padrão ou crença central predominante é “não somos felizes por causa deles”. “Sou justo”, “honesto”, “correto”, “cristão”, “moralmente impecável”… “Eles é que só fazem besteiras, maldades, malfeitos, são desonestos, amorais …”

Impossível a humanidade, alguma população específica ou o próprio indivíduo amadurecerem, crescerem, conscientizarem-se sobre si e a vida, caso a visão do “nós contra eles” não seja compreendida, superada e transcendida. Isto só será viável quando começarmos individualmente a levar a sério o milenar “conheça-te a ti mesmo” e o internalizarmos como propósito de vida.
Jesus disse: “pedis e recebereis” (Mt 7:7-8). Só não se sabe o que pedir e como pedir, para que se receba o desejado. No dia a dia, o indivíduo recebe muito mais o que não quer, exatamente porque não tem o mínimo de autoconhecimento. A identificação com o ego é total, o que faz com que o pedido não passe de um implorar, uma súplica desesperada, devido a alguma insatisfação crônica, um medo psicológico, ou uma carência qualquer. Pedido, na prática, completamente isento de gratidão pela vida que temos.

Talvez Krushnamurti, em tom calmo, questionador e gentil, pudesse explicar sua mensagem didaticamente com outras palavras. Por que não o fazia? Porque “quando o discípulo está pronto, o mestre aparece”, como ensina o ditado oriental. Ele sabia que ninguém convence ninguém. O interessado investiga, se autoconvence. E, quando alguém busca, se interessa, recebe da vida aquilo de que precisa.
Tal como ele sugeria, vamos agora olhar para isso juntos, com muita atenção.  Não para aceitar o que o texto diz, mas para descobrir por nós mesmos se é verdade.

A ilusão dos óculos escuros

O texto começa por dizer que “sem o autoconhecimento, a experiência gera ilusão”. O que é isso? Imagine que você vive usando óculos de sol, uns óculos que você nem sabe que estão no seu rosto. Tudo o que você vê é um pouco mais escuro, talvez com uma cor diferente. Você acha que o mundo é assim.  Mas essa cor, esse escurecer, é uma ilusão.
​Esses óculos são o seu “eu”. Esse “eu” é feito de todas as suas memórias (que lhe dizem o que você é), incluindo seus medos, suas ambições, suas crenças (“eu sou brasileiro”, “eu sou bom nisto”, “eu não gosto daquilo”).  Quando algo acontece — por exemplo, alguém o critica —, você não vê o fato puro.  Você vê através desses óculos.  A crítica passa pelo filtro do “eu” e se torna dor, raiva, ou a necessidade de se defender. Essa ocorrência é uma ilusão.

Uma experiência que não deixa marca

Mas o texto diz que “com o autoconhecimento, a experiência… não deixa uma exclusão cumulativa como memória”.
​O que é esse autoconhecimento?  Não é ler um livro sobre si mesmo.  É perceber os óculos no momento em que eles colorem a sua visão.

Vamos voltar à crítica.  Alguém lhe diz algo grosseiro. No exato momento em que a raiva surge, você apenas observa. Você não a julga (“eu não deveria ter raiva”), não a nomeia, não a justifica (“ele está errado!”).  Você apenas olha para ela como olharia para uma nuvem no céu: com total atenção.
Quando você faz isso, algo curioso acontece.  A raiva vem, é vista por completo, e… vai embora.  Ela não fica armazenada no seu íntimo; não gruda no seu corpo de dor, como diria Eckhart Tolle. Não se torna um resíduo, uma cicatriz psicológica, uma memória que o fará reagir na próxima vez. A experiência aconteceu, foi vista, e acabou. Você está fresco no momento seguinte, plenamente livre de mágoas, ressentimentos ou angústias. Isto é autoconhecimento ativo: uma descoberta contínua, a cada segundo, de como o seu “eu” funciona.

O “Eu” que separa

Agora, a parte mais profunda: “Nunca pode existir ‘a sua experiência’ e ‘a minha experiência'”.
Isso parece estranho, não é?  Vejamos.
​Lembre-se de um momento em que você estava totalmente absorvido em algo empolgante. Talvez jogando futebol, treinando jiu-jitsu, desenhando, ou ouvindo uma música que você adora. Naquele exato segundo de total atenção, havia um “você” pensando “Agora eu estou chutando a bola” ou “Eu estou gostando desta música”?
Provavelmente não. Havia apenas a ação: o chutar, o ouvir.  O “você”, o “eu”, tinha desaparecido.  Havia apenas o viver.
No momento em que você pensa “Essa foi minha grande jogada” ou “Essa foi a minha experiência”, o que aconteceu?  O “eu” voltou.  O “eu” se separa da ação.  Você (o “eu”) olhou para trás e disse: “Aquilo foi meu”. E, quando se olha para trás (o que ficou na memória), a atenção no presente desaparece.

​O texto diz que este próprio termo, “minha experiência”, é a ignorância. É uma ilusão de que existe um “eu” (o colecionador) separado da vida (as coisas que ele coleciona).
​Mas o “eu” é feito a partir de experiências. O “pensador” não está separado do “pensamento”;  o pensador é o pensamento.
​Portanto, viver com autoconhecimento ativo é viver nesse estado de atenção onde não há o “eu” se separando da vida.  Há apenas o viver, o ver, o aprender — a cada instante, como se fosse a primeira vez.