O que está por trás da “proibição da prisão em segunda instância”? Certamente, não é o Direito.

Renato R Gomes Administrador

Chego ao terceiro artigo da série sobre a vulgarmente conhecida “prisão em segunda instância”.

No primeiro texto, demonstrei o erro jurídico grosseiro de se dizer que “a Constituição proíbe a prisão para cumprimento da pena após a confirmação de condenação por tribunal de segunda instância”. Com base em argumentos incontestes, suponho ter comprovado que a única solução constitucional cabível seria a oposta: a que impusesse o cumprimento imediato da pena, quando, com a ratificação de condenação do réu por tribunal, não houvesse mais como se duvidar da autoria do crime, nem como se justificar com a existência de qualquer excludente legal de ilicitude, culpabilidade ou punibilidade. No post seguinte, escancarei a inquestionável e plena ilogicidade da fatídica decisão do STF, de 07/11/2019.

Agora, encerrando a tríade, pretendo reforçar o equívoco da decisão bandidólatra, desnudando a sua real falsidade de fundo (fator metafísico) e a impossibilidade cognitiva de sua admissão como certa (fator epistemológico). Porque ela não é apenas antijurídica e irracional, mas, também, falaciosa em sua fundamentação: tem apenas a aparência de juridicidade, de correção, verdade, mas, efetivamente, não é apta a se aguentar “de pé”, tamanha a sua porosidade!

Desqualificar uma decisão, classificando-a como falsa, pode soar prepotência de minha parte. Afinal, quem sou eu, um “reles” mortal, para falsear uma decisão chancelada por seis ministros do STF? Afinal, Direito não é Matemática. De fato. Entretanto, quando se extrapola os limites jurídicos e se atropela abusivamente os fatos, a resposta do Direito passa a ser tão precisa quanto à da Matemática. Sobretudo, se a ruptura dos contornos normativos se mostrar notória e intuitivamente lesiva aos cidadãos de bem, à confiança e credibilidade que estes depositam no sistema de Direito, à segurança jurídica, ao risco-país. É o caso. Qualquer sujeito inteligente e alfabetizado tem no íntimo essa consciência. Uma mera pesquisa de opinião, elaborada por um instituto sério, não me deixa ser leviano.

Ainda: como já demonstrado que a decisão pró-baderna foi juridicamente errônea e logicamente irracional, o objeto que será analisado e, ao final, caracterizado como falso, não será o resultado interpretativo nela fixado (“proibição da prisão”), mas, sim, a sua justificação argumentativa, mascarada de juridicidade, ora encampada pelos seis ministros que deram metaforicamente uma banana para a necessidade premente da população por ordem e segurança.

De novo, começo pela transcrição da argumentação pró-bandidagem:

Premissa maior. A Constituição (5.º,LVII) diz que somente há culpa em razão de condenação criminal, quando a decisão condenatória tornar-se definitiva (o que se entende por “trânsito em julgado”).

Premissa menor. A condenação em segunda instância não é definitiva, não havendo, por isso, culpa formada do réu.

Conclusão. Se não há decisão condenatória definitiva (transitada em julgado) em segunda instância, não há existência de culpa. Obviamente, a Constituição proíbe o início do cumprimento da pena fixada ou confirmada pelo tribunal.”

Com sabedoria, o psicólogo Jordan Peterson ensina que nós, seres humanos, “tendemos a fazer julgamentos de significado de maneiras relativamente padrão e previsível. A comida, para pegar um exemplo simples, é boa, assumindo que seja preparada de modo palatável, enquanto um golpe na cabeça é ruim, na proporção direta de sua força. A lista de coisas boas ou ruins pode ser ampliada sem muito esforço. Água, abrigo, receptividade e contato sexual são bons; doenças, secas, fome e brigas são ruins. As semelhanças essenciais de nossos julgamentos de significado podem facilmente nos levar a concluir que a bondade ou ruindade das coisas ou situações é algo mais ou menos fixo. Contudo, a interpretação subjetiva – e seus efeitos sobre a avaliação e o comportamento – complica esse quadro simples.” (Mapas do significado. E-book kindle. Posições 1286-1297).

De modo similar, podemos dizer que algo é verdadeiro, caso seja viável o consenso entre as pessoas cognitivamente sãs, em torno da identificação empírica de elementos minimamente objetivos, capazes de dar ao objeto de análise uma qualificação única e inequívoca. Por hipótese, se mil indivíduos veem um cavalo, presume-se que nenhum deles dirá que o cavalo seja um elefante. A verdade sobre a identificação do animal é consensual, atrelada ao estado cognitivo do sujeito e ao conhecimento básico da própria linguagem pela qual ele se comunica e relaciona com os outros.

O mesmo se pode falar de uma decisão judicial. Se houver acordo sobre argumentos objetivos, jurídicos e empíricos, que evidenciem a aberração promovida pelo juiz da ocasião, naturalmente poderá se afirmar que a decisão não apenas foi inadequada, mas, sobretudo, que denota uma falsidade atentatória à inteligência dos cidadãos íntegros, com plena capacidade cognitiva, bem-informados e minimamente alfabetizados, independentemente de terem ou não (de)formação em Direito.

Então, o ponto central é: como estabelecer previamente um estado cognitivo mínimo e generalizado, de maneira que os indivíduos lúcidos, mentalmente saudáveis, possam tranquilamente apontar algo como verdadeiro ou falso, sem que, para tanto, a inevitável subjetividade na interpretação personalíssima da situação ou do fato não influencie ou deturpe o veredicto sobre a veracidade ou falsidade do objeto de avaliação (no caso, a decisão do STF)?

O sistema nervoso humano é composto de muitos subsistemas conectados, responsáveis por nossa regulação biológica. Cada um desses subsistemas tem a sua função, que, não sendo exercida no tempo devido, causa a paralisação de todo o sistema. Consequentemente, para que isto não ocorra, temos que realizar certas ações para sobreviver. Não significa, porém, que sejamos autômatos, que agimos com comportamentos predeterminados.

Se trancarmos num estádio de futebol 50 mil pessoas, privando-as de água e comida por 48 horas, os subsistemas individuais não assumem automaticamente o comando das condutas individualizadas. Contudo, presumidamente, eles, sim, influenciam nossos planos, nossas imaginações, alterando ou modificando o conteúdo e o senso de importância de nossos objetivos, de nossa visão de futuro ideal, reconfigurados por força da comparação com o momento presente abominável, conforme interpretado na ocasião.

Como cada subsistema possui sua própria imagem singular de como o ideal é constituído, no nosso exemplo, as pessoas que estão sem comer e beber há 48 horas, muitíssimo provavelmente terão suas visões de futuro desejável (imediatamente) revistas. Diria que não enxergarão nada muito diferente do ato de estarem comendo e bebendo à saciedade.

Mostra-se muito plausível, portanto, que o grau de conhecimento minimamente consensual entre as pessoas com mente sã é constituído pela junção i) da compreensão intuitiva dos objetos aos quais a linguagem da comunicação se refere (todos sabem identificar ou imaginar um cavalo, quando o vê ou escuta a palavra “cavalo”), ii) com a intensidade de privação de uma necessidade ou um interesse em comum, por estarem vinculados à essência ou à sobrevivência humana.

No caso em questão, o objeto a ser avaliado, identificado e tachado de falso, não é um cavalo, mas, sim, uma decisão judicial, já previamente identificada como juridicamente insustentável e logicamente irracional, além de inegavelmente agressiva aos valores e às necessidades básicas de todo ser humano de bem, tais como a dignidade (da vítima de um crime ou dos membros de sua família), a confiança no sistema de Direito, conhecida por segurança cognitiva (por ser proibida e criminalizada a vingança privada), bem como a segurança física individual e a pública (as quais comete ao Estado o dever constitucional de cuidado). Obviamente, todos – valores e necessidades – desprezados pelos ministros adeptos à bandidolatria.

Pergunta, então, que não quer calar: por que os ministros bandidólatras ignoram a segurança pública e, sobretudo, a individual (dos outros; jamais as deles), fazendo notório pouco caso para a realidade caótica brasileira e o consequente estado de desordem e violência que assola o país, deixando a população assustada, acuada, angustiada, inconformada?

Certamente, não é apenas por faltar-lhes notável saber (que difere de notável conhecimento) para ocuparem os cargos na Suprema Corte. É também, e principalmente, por terem as respectivas consciências contraídas (Deepak Chopra) e o pleno desconhecimento da psicologia humana, sintomas do déficit de autoconhecimento inerente a cada uma de “suas excelências”.

Ou seja, se os “notáveis” são incapazes de diagnosticarem em si próprios vícios de valores e características da personalidade desintegrada que possuem, naturalmente, serão ainda mais incapazes de captar nos outros (e no povo) aquilo que psicológica e emocionalmente os abala.

Empatia, definitivamente, é valor conhecido para os ministros tão só no âmbito semântico, da linguagem oral ou escrita, tal como o é para sociopatas e psicopatas. A linguagem emocional, do coração, que a traduz é menosprezada completamente, pela flagrante ausência de vivência ou experiência pessoal relacionada ao sentimento que a denota.

E não é de surpreender, tendo em vista o modo como levam a vida no dia a dia, integralmente blindados do mundo real, lambuzando-se da infinidade de privilégios acintosos que a grana do cidadão contribuinte lhes assegura irrestritamente, sem o mínimo condicionamento à qualidade do serviço jurisdicional que prestam à sociedade e ao país, ou à observância da responsabilidade socioeconômica e jurídica com que desempenham suas competências.

Em outras palavras, os ministros pró-crime recusam-se a reconhecer o drama da violência e insegurança que atormenta os cidadãos cotidianamente, simplesmente porque, psicológica e emocionalmente, eles não sofrem com as mesmas sensações de medo, angústia e insegurança que fustigam uma parcela imensamente significativa da população.

Os instintos de sobrevivência dos “notáveis” bandidólatras, atrelados à autodefesa, estão hibernando, exatamente porque seguranças pessoais, elevadores privativos, medalhões de lagosta ao molho de manteiga queimada e regados a vinhos importados premiados, carros blindados, salas VIP em aeroportos senão aviões da FAB, tudo pago com dinheiro público, os deixam numa zona de hiperconforto e, por isso, com tempo de sobra para articularem a próxima manipulação jurídica de suas conveniências, as quais, obviamente, nada têm a ver com os interesses ou necessidades da população ligados à contenção da violência e restauração da segurança pública hoje solapada. A necessidade “segurança”, por não lhes dizer respeito e tampouco os afetar, é tranquilamente sobrepujada pela ideologia ou por quaisquer outros interesses ou motivos moralmente inconfessáveis.

Não disso é acaso. A profunda estudiosa das personalidades humanas, a psicóloga Helen Palmer, apoiada no que já havia certificado há um século o grande mestre espiritual e filósofo armênio e descendente de grego, George Ivanovich Gurdieff, relembrou que “estamos ‘adormecidos’ para nossas próprias motivações”, além de termos nossas percepções “distorcidas por defesas psicológicas”. Mais enfaticamente:

“A ideia de que somos cegos para muita coisa em nosso caráter básico é comumente aceita em nossos dias. O desmascaramento de pontos cegos, de mecanismos de defesa e da dissonância cognitiva dentro da estrutura de nosso próprio caráter é uma questão vital para qualquer um que queira levar uma vida psicologicamente madura. É uma tarefa duplamente vital para quem busca se tornar aquilo que Gurdieff denominava um ser humano real. A razão por que esses que buscam devem ter precaução especial com os amortecedores é que os mecanismos inconscientes de defesa são desvios muito específicos da atenção que nos fazem ver a realidade de maneira distorcida.”

Os ministros bandidólatras do STF atestam, por atos, a veracidade da constatação feita pela psicologia. (O eneagrama: compreendendo-se a si mesmo e aos outros em sua vida. 6.ed., São Paulo: Paulinas, 2009. p.33 e 38)

Chegamos, enfim, ao ponto: a fatídica decisão do STF, abençoando o criminoso poderoso com a liberdade quase que absoluta, como se nada tivesse feito de ilícito e a ninguém prejudicado, não é só antinormativa e irracional. Não bastasse isto, a sua fundamentação com a máscara do “direito” é pura manipulação jurídica, presumivelmente construída tão só para esconder as razões psicológicas no consciente ou subconsciente dos ministros que a endossaram. E não poderia ser diferente, pois, a verdadeira, íntima e não declarável motivação de cunho psicológico dos seis “notáveis” pró-delinquência é completamente incompatível com verdadeira e legítima interpretação constitucional.

Efeito natural: apostaria que nenhum cidadão íntegro, politizado, alfabetizado, cônscio da banalização do ilícito e da impunidade generalizada que se materializam no dia a dia das grandes cidades, com as bênçãos de juízes que se autoproclamam “garantistas” (eufemismo para “moralistas bandidólatras, com prioridade de valores invertida, que rasgam as leis conforme sua autoconveniência”), consideraria plausível qualificar e tratar realmente um bandido como “inocente”, porque, num passe hermenêutico e atécnico de “mágica” fajuta, seis ministros, em conluio ou inconsciência, resolveram jogar no lixo a comprovação judicial irrefutável da autoria injustificável dos fatos criminosos.

Daí, mais implausível ainda seria que esse mesmo cidadão, acossado na prática pelos efeitos deletérios da violência e do caos social, concluísse que os “coitados” delinquentes, tidos por “inocentes” devido à exclusiva deturpação semântica da linguagem, sejam proibidos de cumprir suas merecidas penas com a imprescindível celeridade, deixando simultaneamente à míngua a garantia da vítima e de sua família de receber uma resposta estatal contundente, mormente por lhes ser vedada a vingança privada (CP,345).

Em suma, proibir que o criminoso inicie o cumprimento da pena de prisão, confirmada pelo tribunal, é decisão jurídica e faticamente insustentável, logicamente irracional, com fundamentação falaciosa, além de cognitivamente implausível, ao se levar em conta o conhecimento intuitivo dos objetos que a linguagem representa e o clamor da população para que o Estado cumpra sua razão de existir, satisfazendo a necessidade imperiosa chamada segurança.

“Nada vem de graça, e o preço deve ser fatorado, quando o significado de algo é avaliado. O significado de algo depende do contexto; os contextos – histórias, em uma palavra – constituem objetivos, desejos, vontades.(…) Nós resolvemos o problema dos significados contraditórios interpretando o valor das coisas dentro dos limites de nossas histórias (…).” Jordan Peterson. Mapas do significado. E-book kindle. Posições 1445-1452.

Referências e recomendações: 1) Deepak Chopra. O Poder da Consciência. São Paulo: Leya, 2012; 2) Desidério Murcho. Pensar Outra Vez: Filosofia, Valor e Verdade. E-book kindle. 3) Diego Pessi e Leonardo Giardin de Souza. Bandidolatria e Democídio: Ensaios sobre Garantismo Penal e a Criminalidade no Brasil. 3.ªed. Porto Alegre: SV Editora, 2018; 4) Helen Palmer. O Eneagrama: compreendendo-se a si mesmo e aos outros em sua vida. 6.ed., São Paulo: Paulinas, 2009; 5) Jordan Peterson. Mapas do Significado. E-book kindle. 6) Miguel Polaino-orts. Lições de Direito Penal do Inimigo. São Paulo: Liber Ars, 2014.