É ilegal usar a imagem da condução coercitiva de Lula em filme?

Renato R Gomes Administrador

Nova controvérsia em análise: embate entre teor de decisão de Sérgio Moro e crítica depreciativa de Lenio Streck, em artigo intitulado “Moro dá às palavras o sentido que quer! O Direito através do espelho!”.

Como de costume, Lenio Streck “bateu” no Sérgio Moro mais uma vez. Por quê? Porque, quando autorizou a condução coercitiva do ex-presidente para depor, proibira expressamente em sua decisão a filmagem de todo o procedimento. Agora, de modo aparentemente contraditório, autorizou o uso das supostas imagens em filme que está sendo produzido, sob o fundamento de vedação constitucional à censura.

Diferentemente de como deixa transparecer Lenio Streck, a questão não é da simplicidade que lhe convém. Pensemos juntos.

Se a filmagem da condução coercitiva fora proibida judicialmente, parece-me juridicamente óbvio que o uso de imagens reais da condução, gravadas em desacordo com a decisão judicial, será ilegal. Acredito que não serão utilizadas as imagens reais decorrentes de hipotética filmagem clandestina. O que presumidamente ocorrerá será a divulgação de cena fictícia, gravada por atores, no exercício profissional (art.5.º,XIII), simulando o acontecimento notório.

Isto também deve ser proibido? E se a encenação a ser apresentada no filme, para retratar ao máximo a realidade fática, tiver se baseado em conteúdo de gravação feita em descumprimento ao teor do mandado judicial de condução coercitiva?

De modo oposto ao que entende o jurista Lenio Streck, ouso afirmar, com minha humilde convicção, que a reprodução simulada da condução coercitiva em filme futuro não implicará em violação do direito de imagem do ex-presidente. No mínimo, duas são as razões.

Primeira delas: parto da premissa que as imagens reais não serão utilizadas pelo produtor do filme. Se há estas imagens gravadas, a gravação é juridicamente inválida. Então, pressuponho que sejam usadas imagens de atores simulando o fato lícito, verídico, de interesse público  e tratando de cidadão notoriamente conhecido (potencial candidato a Presidente da República tem direito a esconder dos eleitores fato lícito e relevante relacionado à sua pessoa, sob a escora do direito à preservação da imagem?) .

Isto, sim, está amparado pelo direito à informação, à produção artística e pela regra constitucional proibitiva da censura (art.5.º,IX; “é livre a expressão da atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença;” art.220, caput: “A manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a informação, sob qualquer forma, processo ou veículo não sofrerão qualquer restrição, observado o disposto nesta Constituição.” §2.º: “É vedada toda e qualquer censura de natureza política, ideológica e artística.”).

Portanto, transmissão de imagens fictícias, representando um fato lícito, verdadeiro, real, notório, envolvendo pessoa pública, carismática e potencial candidata à Presidência da república, possui inequívoco respaldo constitucional e, consequentemente, não constitui causa de indenização por dano moral, devido à inexistência de infração (art.5.º,V e X).

Inclusive, foi neste sentido o entendimento manifestado pelo Ministro Barroso em excelente artigo, sob o título “Colisão entre Liberdade de Expressão e Direitos da Personalidade. Critérios de Ponderação. Interpretação Constitucionalmente adequada do Código Civil e da Lei de Imprensa”, do qual extraio as seguintes passagens:

 ” (…) haverá exercício do direito de informação quando a finalidade da manifestação for a comunicação de fatos noticiáveis, cuja caracterização vai repousar sobretudo no critério da sua veracidade.”

“Quando se faz referência à necessidade de se atender ao requisito do interesse público no exercício da liberdade de informação e de expressão, na verdade se está cuidando do conteúdo veiculado pelo agente. Isto é: procura-se fazer um juízo de valor sobre o interesse na divulgação de determinada informação ou de determinada opinião. Ocorre, porém, que há um interesse público da maior relevância no próprio instrumento em si, isto é, na própria liberdade, independentemente de qualquer conteúdo. Não custa lembrar que é sobre essa liberdade que repousa o conhecimento dos cidadãos acerca do que ocorre à sua volta; é sobre essa liberdade, ao menos em Estados plurais, que se deve construir a confiança nas instituições e na democracia. O Estado que censura o programa televisivo de má qualidade pode, com o mesmo instrumental, censurar matérias jornalísticas “inconvenientes”, sem que o público exerça qualquer controle sobre o filtro que lhe é imposto.”

Segunda razão: se a reprodução artística simulada da cena da condução coercitiva se baseou no acesso às imagens reais gravadas ilegalmente, isto não a invalida e tampouco pode ser motivo para censurar a transmissão no filme da cena produzida. O motivo também é simples: as imagens verdadeiras são dispensáveis para a criação de cena artística simulada. Bastaria a produção do filme, por exemplo, colher depoimentos de pessoas que presenciaram o fato, ou mesmo, sem escutar quem quer que seja, respaldar-se apenas no que foi amplamente noticiado pelos jornais escritos e televisionados! Filme é arte; e arte, ficção como entretenimento ou informação!

Contudo, se houve, de fato, gravação ilegal das imagens, contrariando ordem judicial expressa, o responsável deve arcar com os efeitos legais de sua conduta infracional. São coisas distintas e independentes, portanto: uma, envolvendo a discussão sobre se pode ou não um filme artístico retratar cena cujo personagem central é cidadão público amplamente conhecido e – segundo palavras do próprio – com histórico “assemelhado” ao de Jesus Cristo; a outra, versando sobre a responsabilização jurídica de quem descumpriu a ordem judicial proibitiva da gravação.

Termino, repetindo o que já disse em outra ocasião: gosto dos textos do Lenio Streck, por sua cultura demonstrada e seu estilo de redação metafórico e irônico, bastante pertinente à realidade brasileira, recheada de aberrações de todos os tipos (em especial, políticas e jurídicas) e para todos os gostos (liberais, socialistas, comunistas etc). Mas, com o devido respeito, seus argumentos tendem mais a confundir um leitor desavisado do que a convencer aqueles que, como eu, não se apegam a viés ideológico algum, mas apreciam o raciocínio analítico e sistemático.