Venho dizendo que as discussões jurídicas no Brasil são predominantemente ideológicas, prestando-se o direito apenas para
mascarar, de modo manipulado, a preferência pessoal do debatedor. As controvérsias em torno da reforma trabalhista é exemplo concreto. O viés ideológico do debate é flagrante; só não consegue enxergá-lo quem está fechado a novos argumentos, porque não concebe a hipótese de mudar o próprio entendimento (ideologia preferida). Humildade, realmente, nunca foi o forte da maioria de especialistas e autoridades brasileiros. Daí a qualidade do “direito” aplicável (interpretações dos textos normativos) que temos.
Gravei vídeo sucinto, pelo qual procurei demonstrar por que afirmo que a disputa jurídica envolvendo a dita reforma é meramente aparente. Natural ter havido críticas; recebo-as de bom grado, por abrirem oportunidade de aprofundar objetivamente a análise jurídica da questão. Comentarei três delas.
A primeira, registrada no meu recém-criado canal no Youtube (a unidade do direito em foco), diz que eu não devo ter lido “os dispositivos dessa lei brutal e absurda”, porque dos “cerca de 200 dispositivos alterados, nenhum é favorável aos trabalhadores”. Como se reforma trabalhista tivesse que ser necessariamente sinônima de “reforma a favor do trabalhador”, ao invés de se constituir em reforma para aperfeiçoamento das negociações inerentes às relações de trabalho e ao fomento da empregabilidade!
Muito fácil notar que a insatisfação demonstrada não tem nada de jurídica, e tampouco é objetiva. Pura manifestação de juízo de valor ideológico. Juízo de valor, baseado no que se entende como texto normativo “bom” ou “ruim” para o trabalhador.
Lei boa ou ruim, além de classificação subjetiva, não tem fundamento nos fatos. Por quê? Porque, até então (data em que escrevo: 30/10/2017), sequer entrou em vigor ainda, o que ocorrerá no dia 11/11/2017. A partir de então, sim, poderemos constatar o que acontecerá na prática cotidiana das relações de trabalho.
Além disso, qualquer regramento de relação trabalhista deve considerar, também, a situação de quem gera o emprego, do empresário, dos que efetivamente têm condições de viabilizar o pleno emprego, como desejado constitucionalmente (170,VIII). Ou seja, se for necessário ao legislador restringir ou flexibilizar certos direitos do trabalhador, respeitando os parâmetros da Constituição (CF,7.º), para, em contrapartida, o mesmo trabalhador ter assegurado o seu emprego (principalmente se a economia não vai bem), não implica obrigatoriamente na invalidade da alteração normativa. Resposta dada à minha crítica:
“Você tocou no ponto: li, e não importa o meu juízo de valor, ou o seu, ou o de qualquer outra pessoa sobre se a nova redação é prejudicial ou não ao trabalhador. Nossas crenças pessoais são insuficientes para justificar a invalidação de qualquer lei. Por que digo isto? Porque, do fato de o novo texto aparentemente poder ser avaliado como menos protetivo, ruim para o trabalhador ou retrocesso social, não significa que será, na prática, prejudicial a ele! Impossível se afirmar isto! Só com o passar dos anos, após a entrada em vigor da reforma, é que se poderá constatar qualquer resultado. E, ainda: onde está escrito que a legislação trabalhista deve ser incondicionalmente protetiva do empregado? Não existe nada neste sentido! Existem, sim, parâmetros constitucionais que asseguram juridicamente condições mínimas de trabalho ao empregado. Garantir condições protetivas do empregado também não implica em eliminar, completamente, a sua autonomia da vontade para negociar com seu empregador, como se este tivesse sempre a intenção de explorar o seu empregado!”
Uma segunda crítica (registrada na página do Facebook “A unidade do Direito em foco”) fez menção aos artigos 790, 790-B e 791-A, da CLT, como exemplos de modificações legislativas supostamente inconstitucionais. Meu crítico disse que não justifiquei o porquê de não considerar estes artigos restritivos do acesso à justiça. E que, para defender posições jurídicas sérias, tenho que me basear na realidade, e, não, fazer afirmações abstratas.
De fato, não foi a minha proposta analisar item por item da reforma trabalhista, mas, sim, demonstrar que as discussões a respeito do tema nada têm de jurídicas. Respondi o seguinte:
“Não restringirão [o acesso à justiça] porque, no caso concreto, o juiz poderá, em exame incidental, afastar a aplicação [das novas regras], de modo a garantir o pleno acesso à justiça [se a restrição se mostrar abusiva na ocasião], assegurado pela CF (5.º,XXXV). O que não se pode é dizer especulativamente, sem qualquer base fática justificativa, que o artigo X ou Y é inconstitucional, porque viola isso ou aquilo! Essa argumentação genérica é o que eu chamo de “achismo”, subjetivismo, previsão premonitória, ou qualquer coisa do gênero. NADA DE JURÍDICA; sim, IDEOLÓGICA.”
Em réplica, meu elegante crítico, discordando do que argumentei, disse:
“(…) claro que é possível prever quais serão os efeitos na realidade de uma norma, depois de aprovada. Se não fosse, a atividade legislativa seria impossível. Cabe ao legislador, sempre, prever os efeitos reais na sociedade que a aprovação de um projeto de lei trarão. Se o juiz PODERÁ declarar a inconstitucionalidade no caso concreto, é claro que poderá (sic). Mas isso não tem importância nenhuma para o mundo real e o debate social. Estou querendo dizer que é evidente que, uma vez aprovada, a norma será aplicada por muitos juízes que, em meio a um mar de processos e no contexto de sua rotina de trabalho, sequer cogitarão sobre a constitucionalidade.
Além disso, também não tem sentido dizer que essas regras não restringirão [o acesso à justiça] porque a inconstitucionalidade poderá ser declarada incidentalmente; (…) a declaração de inconstitucionalidade em abstrato é possível; na verdade, a inconstitucionalidade em abstrato é a regra; a declaração incidental de inconstitucionalidade, em controle difuso, é exceção e só foi criada em 1803, no ‘Marbury x Madison’.”
Frisei, em negrito, os pontos relevantes da objeção. Escrevi o seguinte:
“Sem dúvida, presume-se que toda lei seja criada tão somente após o Congresso ter feito a chamada prognose legislativa. Esta prognose é abstrata: uma previsão genérica do que poderá acontecer no futuro, com base nas experiências passadas, acrescidas do que se espera com as mudanças de hoje. Tranquilo neste ponto.
Mas quando tratamos de invalidar textos normativos, aqui no Brasil tem-se o péssimo hábito de a invalidação ser pautada também em previsões de futuro. Não cabe ao Judiciário fazer isto [porque estaria usurpando a competência do Legislativo]. Invalida-se apenas se houver dados jurídicos objetivos e flagrantemente atentatórios à Constituição. No caso da reforma trabalhista, não existem.
Há, sim, diversos pontos de vista a respeito do que vai acontecer lá na frente. Este é o problema no qual bato: não há como sabermos [sem nos basearmos em pura especulação, fundamentada numa leitura hipotética da realidade, com apoio em nossas crenças ideológicas].
Pode piorar a situação do empregado? SIM! Pode melhorá-la em relação a hoje? SIM! A reforma foi boa? Ruim? Seletiva? Genérica? Mal ou bem intencionada? Qualquer resposta será puro juízo de valor, embasado numa expectativa de futuro.
Cheguei onde queria, e no que tentei passar com o vídeo: normatizar, com lastro em previsão de futuro, não há dúvidas: cabe ao nosso lamentável Congresso atual! O nosso igualmente lastimável Judiciário lotérico deve calçar as sandálias da humildade e aceitar a regra do desenho institucional democrático vigente, caso não aponte, com OBJETIVIDADE, o porquê da inconstitucionalidade eventual!”
Complemento: o fato de o juiz do trabalho se encontrar assoberbado de processos e não dar episodicamente importância ao controle de constitucionalidade no caso concreto, não é argumento jurídico para justificar um ativismo judicial por parte do Supremo Tribunal Federal, por meio de declaração de nulidade de lei, sem que haja ofensa clara e direta ao texto constitucional, identificada por critérios objetivos, e, quiçá, elementos empíricos que a sustente. É mera suposição especulativa e irrelevante juridicamente para que possa influenciar invalidação de lei pelo Judiciário.
Uma terceira objeção à minha argumentação apresentada no vídeo, que ressaltou o caráter ideológico da discussão, também está registrada na página do Facebook. Por esta, o crítico discordou quando falei que não há elementos fáticos que justifiquem a invalidação de mudanças nas relações de trabalho. Alegou ele o seguinte:
“A mim, as conjecturas fáticas são bastante presentes. Você prega que não há colisão entre o direito à melhoria das condições de trabalho (art.7.º,XXII, da CF) e uma norma que autoriza grávida a trabalhar em local insalubre [CLT,394-A], revogando outra que proibia tal prática? Para você, o juiz é boca da lei [mero repetidor do que está escrito nas leis]? Infelizmente, (…) o sentido da norma não se encontra perfeitamente acabado sem alguma atividade interpretativa do operador, por mais trivial, até por questões de semiótica.”
Digo que o chamado por ele de “conjecturas fáticas bastante presentes” foi o juízo valorativo feito, considerando que permissão legal para uma gestante trabalhar em local insalubre, revogando a proibição anterior, é presumidamente prejudicial à empregada e, por isso, supostamente inválida.
Creio que não faz sentido que, de uma simples permissão legal – e não de uma imposição -, tenhamos que presumir que grávidas serão forçadas a trabalharem em condições de insalubridade, por se encontrarem sempre em estado de perigo ou situação de impossibilidade de recusa. Além disso, i) o que se entende por “insalubridade”? ii) Qualquer situação classificada como “insalubre” prejudicará inevitavelmente a gestante que tenha buscado o emprego e o aceitado voluntariamente? iii) Não seria mais condizente com o senso de autorresponsabilidade individual deixarmos a própria gestante decidir o que seja melhor para ela e seu futuro bebê? iv) A permissão legal que atribui à gestante o direito de decidir se aceita ou não determinado emprego significa necessariamente que todo empregador, em função desta faculdade, somente irá oferecer trabalhos insalubres às grávidas? Estes questionamentos – e outros possíveis de serem cogitados – ficam para a reflexão, leitor. Minha resposta à crítica:
“Nós discordamos na origem: não aceito que juízes invalidem textos legais com base em princípios genéricos (dignidade humana? Retrocesso social? Etc), sem critérios objetivos que permitam a qualquer cidadão entender o resultado da interpretação. Ponderação? Significa ‘preferência do intérprete; gosto’.
Isto não implica em que o julgador seja mero ‘boca da lei’ [repetidor do que está escrito]; de modo algum. Mas vai exigir, sim, que o intérprete se esforce para sofisticar a sua argumentação.
No mérito, eu e você queremos o mesmo: que reine o pleno emprego e o crescimento econômico, e que as pessoas convivam em harmonia. No caso, empregados e empregadores!”
(…) E digo tranquilamente: com base no critério que adoto para OBJETIVIDADE jurídica, sustentada em dados empíricos, não terei o menor receio de mudar de posição, caso eu me veja sendo incoerente!”
Por mais que as três objeções à suposta validade da reforma trabalhista procurem amparo na Constituição, tentei demonstrar, com argumentos, por que afirmo que a maioria dos debates jurídicos no Brasil não tem nada de jurídicos. São, no fundo, dilemas ideológicos ou morais, recheados de alegações subjetivas de ambas as partes. O Direito? Por ser mudo e inerte, não passa de uma vítima do apego dos intérpretes ao próprio conhecimento! Para nossa sorte, ele, Direito, é extremamente resiliente e ressurge das cinzas quando menos esperamos (vide a criação da famosa “delação premiada” e o bem que tem feito ao país!).
“Que tipo de mensageiro você é? Você emite a verdade ou mentiras? Percebe a verdade ou apenas as mentiras? A questão toda gira entre verdades e mentiras. Este é o cerne da questão, e é isso que faz toda a diferença, porque todos os conflitos – sejam internos ou entre seres humanos – resultam do ato de se emitir mentiras e se acreditar nelas.” (Don Miguel Ruiz e Don Jose Ruiz. O quinto compromisso. Rio de Janeiro: BestSeller, 2017)