Há poucos meses, o STF mudou a sua jurisprudência sobre a possibilidade de um réu já condenado iniciar o cumprimento de sua pena de prisão, antes do encerramento definitivo do processo penal, conhecido como trânsito em julgado.
A Corte passou a admiti-la, pelo voto de uma maioria, composta por seis ministros, estando, dentre eles, o juiz Hércules brasileiro, o Supremo Gilmar Mendes.
Decisão acertada do STF? Indiscutivelmente, como demonstrei exaustivamente no meu ebook, Desmistificando a presunção de inocência. Primeiro, porque a Constituição de modo algum condiciona a execução da pena à condenação definitiva. Ela apenas vincula o reconhecimento da culpa definitiva à existência de trânsito em julgado da decisão condenatória (5.º,LVII); nada mais. Os que entendem diversamente, é porque não conseguem ou não querem analisar sistematicamente os textos normativos à luz das regras semânticas da linguagem e da realidade caótica brasileira, que clama urgentemente por um Direito socialmente eficaz.
Não há como o Brasil se tornar um país de primeiro mundo, sem que a eficácia de seu sistema jurídico seja reconhecida. Direito ineficaz equivale ao não-Direito ou à anomia. E ausência de Direito eficaz não se coaduna com um regime verdadeiramente democrático, mas, sim, com um regime anárquico, no qual prevalece a lei do mais forte ou poderoso. Certamente este não é o caso do Brasil, país governado por “políticos sérios”, “presumidamente inocentes”, que somente respondem a processos penais em razão de “pequenos delitos” praticados, e sequer foram condenados definitivamente pela Suprema Corte!
O Direito brasileiro é notoriamente ineficaz. Sustenta-se ao longo de tantos anos, porque o eleitor é omisso na escolha de seus representantes políticos. Não se preocupa em conhecer o caráter do seu candidato. A moralidade pouco importa. O eleitor é cordial; tolera e perdoa malfeitos, desde que o seu vereador, deputado, senador, governador ou presidente não atente contra seus próprios interesses; em especial, interesses econômicos e financeiros. Como bem ressaltaram Ricardo Rangel e Merval Pereira recentemente, em seus respectivos artigos “Somos todos cordiais” e “Nossos malvados preferidos”, a moral do brasileiro é fluida, flexível; é espécie de moral econômica egoística, de natureza amoral.
Por que será que os códigos de processo civil e penal, por exemplo, contemplam tantas possibilidades de interposição de recursos judiciais? Realmente, é para disciplinar a ampla defesa constitucionalmente garantida (5.º,LV)? Duvido. São códigos que aparentemente regulamentam o exercício da ampla defesa. Apenas aparentemente, pois, na prática, os maiores beneficiados dessa tal “ampla defesa” são os infratores da lei, e, não, as vítimas dos atos ilícitos praticados. As chances de prolongarem a duração do processo continuam intactas como sempre estiveram. O fato de a Constituição fixar a duração razoável do processo como meta e garantia fundamental (5.º,LXXVIII) foi ignorado pela organização política criminosa da ocasião. É ampla defesa de mão única.
Conseguimos, então, entender o porquê de tamanha resistência em se enxugar o número de recursos. Os poderosos políticos ou endinheirados, que se consideram acima da lei, desdenham da capacidade do Poder Judiciário e da possibilidade de serem punidos por crimes cometidos. Por serem ricos, conseguem arcar com os altos custos de um processo e contratar caríssimos advogados, que se valem das minúcias processuais para alongarem suas defesas por anos a fio, ad eternum. Curiosidade tupiniquim: é a habilidade de o advogado criar firulas processuais que irá fazer com que o poderoso, investigado e processado criminalmente, permaneça indefinidamente qualificado como “presumidamente inocente” e, por isso, seja tido por juridicamente capacitado a continuar como titular de seu cargo público eletivo, aproveitando-se das benesses que o poder lhe assegura.
“Não vale a pena enriquecer às custas do dinheiro público, já que ficarei impune? Claro que vale! É o pobre que me elege, e ele não lê jornal; só limpa a bunda com ele; não quer saber de política! Então, vou ser reeleito de qualquer forma!”, presumidamente pensa o político poderoso. Por outro lado, “Por que acionar o Poder Judiciário, se não tenho dinheiro para custeá-lo e, ainda, se suas decisões são de natureza lotérica? Minha justiça, faço eu. O código penal que se dane (CP,345); ninguém é preso mesmo!”, deve imaginar o indivíduo classe-média, que, apesar de ter o bom direito a seu favor, tem contra si os custos processuais, o do bom advogado e a total imprevisibilidade na aplicação do Direito pelo Poder Judiciário.
Mas há momento em que o cidadão comum lesado precisa recorrer ao Poder Judiciário. Neste momento, os códigos processuais transformam-se em aberrações jurídicas, ao menos nas partes que estabelecem e regulamentam os recursos judiciais. Com dificuldades, contratam advogados e torcem para que tenham êxito logo na decisão de primeira instância. Senão, causa praticamente perdida: não compensa interpor recursos, criando-se uma falsa expectativa de que a sentença será reformada na instância superior. Não há previsibilidade na aplicação do Direito. Tudo pode acontecer. Para que postergar a agonia de agora? Melhor aceitar a perda e seguir a vida.
Existem dois fatores relevantes, que afetam diretamente a eficácia do Direito. O primeiro é a falta de uniformidade com que juízes de primeira instância decidem questões similares. Cada um tem o seu próprio “entendimento”. Consequência: o cidadão fica na torcida, para que seu processo caia na Vara X, em vez de na Y ou Z. Enquanto o resultado da decisão depender da “convicção” do juiz da Vara judicial e, não, do respeito à igualdade de tratamento e à coerência normativa, a eficácia do Direito permanecerá enfraquecida e vinculada à pura aleatoriedade.
O segundo fator está relacionado com a frequência como que o STF altera sua jurisprudência. No momento atual, a credibilidade do Direito encontra-se ainda mais ameaçada, diante das declarações recentes do Supremo ministro Gilmar Mendes. Mal o STF – com a ajuda de seu voto, diga-se de passagem – evoluiu e autorizou a prisão de criminosos após a condenação em segunda instância, o ministro começou a criticar a maior eficácia dada ao Direito penal, com a execução antecipada da pena por ele autorizada, sem apresentar qualquer fundamento jurídico novo ou elemento fático que justifique o retrocesso da recém-jurisprudência.
Não satisfeito, atacou a delação premiada do delinquente Joesley, que comprometeu a casta política nacional, e saiu impune, pela imunidade que a Procuradoria-Geral da República lhe concedeu no acordo, em troca de provas robustas que pudessem sanear a imundície política nacional. Decisão do PGR gerou certa indignação, mas foi juridicamente sustentável, por propiciar a indiscutível utilidade pública: o saneamento político e partidário. Um bandido solto e muitos presos; ou um preso e muitos soltos, com a agravante de continuarem com controle dos órgãos do Estado? O Supremo ministro faz vista grossa para a realidade; defende que a delação seja levada para avaliação do Plenário do STF.
Em que país vive o Supremo ministro? Mas ainda há vozes lúcidas na Corte, como o Ministro Barroso. Questionado sobre ambos os temas, respondeu, com a peculiar clareza e lucidez de um cidadão que vive no país, e conhece das suas mazelas:
“A verdade é que um país não pode ir mudando o Direito conforme o réu. Isso não é um Estado de direito, é um Estado de compadrio. Portanto, o Direto tem que ser único e valer para todo mundo. O poder, inclusive o Judiciário, tem que ser um instrumento para fazer o bem e a Justiça. Não pode ser uma forma de ajudar os amigos e perseguir os inimigos.” “Eu penso que em linha de princípio um acordo homologado deve prevalecer […]. Seria uma deslealdade do Estado, uma vez obtida a informação, não honrar o compromisso que assumiu.”
O Supremo ministro Gilmar Mendes, doutor em direito que é, não deveria fazer pouco caso do dever que o STF tem de zelar pela razão de existir do Direito: inibir ilícitos; reprimi-los com contundência, quando praticados; e pacificar conflitos.
O fato que não pode ser apagado é que o cidadão brasileiro honesto e trabalhador, com senso de justiça apurado, não está mais suportando a situação política atual do país. Em algum momento, “o caldo vai entornar”. É muito cinismo e deboche por parte dos mandatários; é muita arrogância e prepotência exalada de quem tem poder de decisão e se considera intocável; é afronta constante à inteligência de todos os que são minimamente informado e capazes de raciocinar livremente.
Economia em frangalhos, desemprego em massa, país em descrédito internacional, sendo motivo de chacota. Organização criminosa infiltrada nos Poderes do Estado; corrupção sistêmica escancarada; desvios de dinheiro público jamais vistos em qualquer lugar do planeta Terra, dando prejuízos a empresas antes consideradas referência nacional, como PETROBRAS e BNDES.
Não bastasse isso, os próprios políticos tentam se autoproteger a qualquer preço, aproveitando-se da própria competência e das prerrogativas inerentes ao cargo. A tentativa incessante de aprovar leis que inibam as atividades investigativa e persecutória exercidas pela Polícia Federal e pelo Ministério Público Federal são exemplos cabais. O projeto-de-lei do abuso de autoridade, que tipificava o “crime de hermenêutica”, e o que proíbe a delação premiada feita por réus presos, são evidências do pleno déficit de representatividade parlamentar.
E, ainda, para agravar a situação, ressurge o Supremo ministro, atropelando a LOMAN (lei orgânica da magistratura), para criticar abertamente pela imprensa os procedimentos adotados pelo Ministério Público, ou as decisões de juízes no curso das investigações e dos processos penais, com os quais discorda por razões para lá de questionáveis.
Se ao menos as suas declarações públicas trouxessem argumentos jurídicos incontestáveis e embasados em fatos… mas, não: são subjetivas e arbitrárias, sustentadas pelo status de Supremo ministro. E, mais uma vez, a credibilidade do Direito e do próprio STF se vê ameaçada, tornando-se refém da vontade de um ministro, que já demonstrou implicitamente dar quase nenhuma importância para a possibilidade de ser colocado um freio no mecanismo de exploração do Estado pela organização política criminosa, tão bem descrito por José Padilha, passível de ser traduzida pelo “bando de salafrários que se reúnem para roubar juntos“, na versão hard de Diogo Mainardi.
A postura do Supremo ministro trouxe a minha mente a lembrança do ex-Ministro Joaquim Barbosa, que, em discussão no Plenário do STF, dirigiu-se a ele e disse: “Vossa excelência está na mídia, destruindo a credibilidade do Judiciário brasileiro.” De modo ainda mais cirúrgico, manifestou-se o professor Luiz Flávio Gomes, para o qual “Gilmar Mendes blinda os amigos corruptos“, como demonstrou a mudança repentina de seu posicionamento quanto à possibilidade de prisão após condenação em segunda instância, tão logo seus amigos do PMDB e PSDB foram encurralados.
O Supremo Tribunal Federal encontra-se numa linha tênue, entre ser reconhecido pelos cidadãos como efetivo guardião da Constituição e o responsável pelo resgate da credibilidade do Direito, ou como sendo o Supremo obstáculo ao combate da corrupção sistêmica, caindo na vala comum da podridão institucional. A seguir cenas dos próximos capítulos.