O STF autorizou extradição de brasileira nata, posteriormente naturalizada norte-americana. Motivo? Matou o marido, ex-piloto da força aérea dos EUA.
Argumento principal para justificar a inédita decisão: ao se naturalizar americana, a brasileira perdeu a nacionalidade brasileira, tendo sido esta declarada em 2016, pelo próprio Supremo, a pedido do Governo americano (reportagem aqui).
Em tese, penso que a decisão foi adequada. Apesar de o art.5.º,LI, afirmar que “nenhum brasileiro será extraditado, salvo o naturalizado (…)”, nas hipóteses ali previstas, o art.12,§4.º,II, excepciona a proibição de extradição. Literalmente: art.12§4.º- “Será declarada a perda de nacionalidade do brasileiro que: (…) II – adquirir outra nacionalidade, salvo nos casos: a) de reconhecimento de nacionalidade originária pela lei estrangeira; b) de imposição de naturalização, pela norma estrangeira (…), como condição de permanência em seu território ou para o exercício de direitos civis.”
Podemos concluir, então, que a proibição contida no art.5.º,LI, é afastada pela própria Constituição, nos casos de perda de nacionalidade expressamente detalhados.
Contudo, apesar de a decisão poder ser entendida como adequada, em Direito, (quase) sempre podemos controverter: 1) a perda do vínculo jurídico com o Estado brasileiro apaga o fato natural de a pessoa nascida em terras brasileiras ser qualificada como brasileira de origem? Ou seja, “perder a nacionalidade brasileira” (supressão do vínculo jurídico com a República Federativa do Brasil) significa “deixar de ser brasileiro nato” (nascido em solo brasileiro, no sentido semântico da expressão, na linguagem comum)?
Em teoria, creio ser viável, pelo argumento da dissociação, interpretarmos a expressão “brasileiro nato” de duas formas: 1) considerando apenas o vínculo jurídico originário com o Brasil, segundo o critério legal pertinente à situação (jus solis); e 2) considerando não apenas o vínculo jurídico originário, mas, também, o fato natural de ter nascido em solo brasileiro, dando ênfase ao núcleo de sentido comum da linguagem ordinária. Nesta segunda hipótese, não seria absurdo entendermos que a perda da nacionalidade não elimina o fato real e consumado de a pessoa ter nascido no Brasil, devendo, portanto, esses elementos (vinculo jurídico e nascimento efetivo no lugar) serem desvinculados. E, daí, concluirmos que a proibição da extradição de brasileiro nato não admite constitucionalmente exceção.
Esta questão se complica também, quando trazemos para a análise conjunta o caput do artigo 5.º, cujo texto expressa literalmente que “Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade (…)”, elencando, a seguir, os direitos e garantias assegurados aos titulares identificados: “brasileiros e estrangeiros residentes no país”.
Se, por exemplo, um brasileiro nato impetrasse mandado de segurança para restaurar direito líquido e certo violado (art.5.º,LXIX) e, no curso deste processo e paralelamente a este, fosse declarada judicialmente a perda da nacionalidade, por ter incidido a regra constante no art.12,§4.º,II, os efeitos da perda da nacionalidade (extinção do vínculo jurídico com o Estado), necessariamente, acarretariam a extinção do mandado de segurança? Independentemente da gravidade da lesão ocasionada no direito líquido e certo pelo ato de autoridade? Porque, deixando de ser brasileiro e morando no exterior, em tese, deixaria de ter amparo nos direitos e nas garantias fundamentais fixados no rol do artigo 5.º (não abordarei aqui as teorias que defendem a extensão dos direitos e garantias aos estrangeiros também, por força do princípio da dignidade da pessoa humana – art.1.º,III -, da prevalência dos direitos humanos – art.4.º,II-, ou dos tratados internacionais incorporados ao sistema jurídico com status normativo equivalente à emenda constitucional – art.5.º,§3.º).
Este exemplo mostra que, ao se ignorar por completo o fato natural do nascimento como pessoa humana portadora de dignidade, pode haver consequências graves para o indivíduo enquanto ser humano.
Mas, por coerência, da mesma forma como foi autorizada a extradição por meio de norma extraída de interpretação preponderantemente literal dos art.5.ºLI c/c 12,§4.º,II, por coerência, também deveria ser extinto o processo de mandado de segurança por ausência de legitimidade ativa ad causam, pouco importando o direito do “ex-brasileiro nato” que foi infringido pela autoridade (um adendo: “ex-brasileiro nato” não seria um paradoxo?)!
Ainda: no Brasil, os direitos fundamentais de presos são tratados como que absolutos, por influência de leitura parcial e ideológica feita pela doutrina dos direitos humanos. Esta doutrina, aliada à visão distorcida de garantismo penal acolhida e difundida por criminalistas brasileiros, influencia a interpretação judicial generosa da lei penal e processual penal, realizada em benefício de reús e presidiários condenados em geral, seja na delimitação da pena, no seu cumprimento, ou na concessão de benesses processuais, incluindo-se criminosos hediondos como “premiados legais” (casos Pimenta Neves, Guilherme de Pádua e do Goleiro Bruno estão aí; paradigmáticos!). Cumprir pena no Brasil, então, vale a pena para o delinquente: duração curtíssima! O problema para ele será somente a “falta de conforto” e de condições de estudo no presídio, o que irá impossibilitá-lo de se redimir socialmente e de aproveitar oportunidades de emprego no futuro (alguém acredita verdadeiramente nesta utopia de que prisão visa prioritariamente à ressocialização e, não, a punição exemplar pelo desrespeito ao direito penal, pelo estrago provocado na vítima, sua família e segurança pública e individual?).
Mas se o fim preponderante da prisão é tido como sendo a (utopia e ficção da) ressocialização (novamente: prisão do Brasil presta-se para regenerar mesmo?), e os delinquentes hediondos são vistos como meros “coitados” ou “vítimas” da desigualdade social e negligência do Estado na prestação de serviços essenciais à população, não seria incoerente extraditar brasileiro nato para responder por homicídio perante a justiça criminal americana?
Porque presumo que, nos EUA, o cumprimento da pena tende a ser muito mais severo do que se fosse cumprida aqui no Brasil, havendo, inclusive, a possibilidade de prisão perpétua! Ou você acha que os EUA ficarão melindrados em descumprir as condições fixadas na decisão do STF, como pressupostos para autorização da extradição (que não sejam aplicadas pena de morte ou prisão perpétua, por não haver estas penalidades em nosso sistema jurídico)?
Por outro lado, o STF acabou acertando na decisão por razões de coerência com a sua própria jurisprudência. Recentemente, o Tribunal entendeu que os presos em condições indignas fazem jus à indenização tarifada por danos morais (2 mil reais). Nada mais harmônico então do que a Corte ter autorizado a extradição de brasileira que perdeu judicial e constitucionalmente o vínculo de nacionalidade com o Brasil, para responder pelo crime de homicídio no país em que o cometeu (EUA), no qual vigora regime prisional notoriamente muito mais “confortável” e “capaz de ressocializar” do que o brasileiro!