Hoje, saio das análises de artigos ou comentários de terceiros, para abordar um assunto incompreensível por pessoas leigas em Direito e, inclusive, inexplicável por profissionais da própria área jurídica, devido, muitas das vezes, à falta de estudo ou conhecimento, ou mesmo à dificuldade de raciocinar e argumentar com atenção às nuances, exatamente por não as perceber.
Por que existem tantas interpretações jurídicas toleráveis para solucionar um só problema? Ou melhor: por que temos – nós, a população – que aceitar, como decisão judicial válida, um resultado que decorra de interpretação, para muitos, extremamente incoerente e injusta? Por que o Direito admite interpretações atentatórias ao senso comum predominante na sociedade? Ou ainda: por que juristas e ministros de tribunais reconhecem interpretações e decisões que produzem distorções no Direito como sistema normativo coerente? Em outras palavras: por que é tão difícil o consenso na doutrina e no Judiciário sobre temas relevantes socialmente e que envolvam interpretação jurídica?
O que costumamos escutar são chavões de autoridades no Direito, sempre quando as pessoas reagem ou ficam indignadas com opiniões de especialistas, decisões judiciais ou teses jurídicas incompatíveis com a realidade social vivenciada. Quem de nós já não assistiu na Globo, ouviu na CBN, ou leu em grandes jornais, por exemplo, “temos que respeitar a Constituição” ou “o Judiciário não pode satisfazer a ânsia de vingança da população”?
Mas ninguém, autoridade judicial ou doutrinária alguma, ousa expor o seu raciocínio completo, que a levou a decidir neste ou naquele sentido. Afirma-se o conveniente, por artigos escritos em meios especializados ou jornais de grande circulação, ou oralmente na mídia, sem a apresentação de qualquer justificativa argumentativamente detalhada e convincente. Para que se dar ao trabalho, se a população, em sua maior parcela, é juridicamente ignorante e suporta pacatamente tudo o que vem de cima e lhe é “empurrado goela abaixo”?
Não importa, para uma ou outra autoridade-estrela, com força institucional ou acadêmica, que a decisão ou teoria despreze o senso crítico ou a inteligência de brasileiros minimamente instruídos. Parte-se do princípio de que o desconhecimento teórico do Direito pelo cidadão, por si só, o obriga a acatar a opinião do ministro, advogado ou jurista, como se inexistisse possibilidade de se resolver o conflito, em conformidade ao sentido de coerência e justiça que prevalece na voz do povo.
Volto à questão: por que essas discrepâncias na interpretação do Direito ocorrem com tanta frequência? Se notoriamente fragilizam a credibilidade do Direito, retiram-lhe a efetividade e minam a confiança dos indivíduos no Poder Judiciário, por que nada se faz para mudar ou impedir isso?
Tenho algumas respostas para essa incógnita. Neste momento, vou me ater apenas a uma delas: os juízes, ministros, advogados e juristas, quando interpretam os textos legais e constitucionais, de modo (in)consciente, e por várias vezes, menosprezam o contexto integral dos fatos; contexto que embasa empiricamente a atividade de interpretação.
Dito de outra forma, o intérprete seleciona os fatos do mundo real que lhe convêm. Faz isto arbitrariamente, por livre e espontânea vontade, de acordo com o seu humor, para criar um resultado interpretativo que atenda à sua convicção política, moral ou ideológica. E, na pior das hipóteses, para agradar a um “amigo oculto”, o que não chega a ser surpreendente numa cleptocracia como a brasileira.
E por que o faz? Simples: especificamente no Brasil, grosso modo, a interpretação jurídica a cargo da doutrina, de advogados ou dos juízes, é feita sem a observância de quaisquer critérios objetivos e vinculantes, que poderiam assegurar a adequação do significado atribuído aos textos da lei pelo jurista, profissional ou juiz.
Imagino que, agora, eu esteja sendo contestado: “Renato, você está sonhando; não há parâmetros objetivos e vinculantes, que, se observados, façam com que incoerências jurídicas sejam detectadas com certo grau de objetividade, ou que o excesso de subjetivismo ou arbítrio do intérprete seja identificado.”
Respondo: parâmetros vinculantes, de fato, não existem. Se não há previsão legal para obrigar o julgador a atender os critérios X, Y ou Z, nas condições A, B ou C, temos que acreditar e confiar no seu “notável” saber jurídico. Contudo, há, sim, parâmetros teóricos e fáticos objetivos, capazes de garantir o controle de coerência normativa da tese doutrinária ou decisão judicial.
É possível, sim, quando o intérprete não os obedece em situações devidas, apontar as falhas na sua argumentação, demonstrando o porquê de o resultado por ele defendido ser juridicamente injustificável. (Recomendo a leitura de meu e-book Interpretação jurídica coerente: premissas fundamentais e metodologia, no qual apresento e justifico com originalidade tais parâmetros.)
Darei um exemplo que bem ilustra a forma aleatória e puramente voluntariosa com que o intérprete recorta a realidade, visando à construção de um contexto fático que sustente a interpretação conforme os seus anseios.
Recentemente (16/05/2017), a 2.ª Turma do Supremo Tribunal Federal “trancou” processo penal em curso, no qual o réu respondia pela prática de furto de um aparelho de telefone celular, avaliado em 90 reais. A 2.ª Turma do STF, por unanimidade, concedeu habeas corpus (HC 138697) ao infrator e assegurou-lhe novamente a liberdade de ir e vir, revogando a decisão da 5.ª Turma do Superior Tribunal de Justiça, que o havia negado.
Por que a divergência de opiniões entre o STJ e o STF? Há fundamento jurídico objetivo para que os dois Tribunais mais relevantes do país discrepem em entendimentos? Quem tem razão?
O cerne da questão envolveu a aplicação do conceito de “insignificância da lesão” causada à vítima pelo criminoso. Para o STJ, a noção de “insignificância” tinha como parâmetro a existência de prejuízo material de valor inferior a 10% do salário mínimo vigente à época do delito cometido, combinada à ausência de reincidência na prática de crimes pelo réu. Não foi o caso. O réu, além de reincidente, furtou bem de valor superior ao limite definido como critério de aferição da insignificância da lesão.
O STF discordou. O ministro Ricardo Lewandowski, acompanhado pelos demais, entendeu que a tese da reincidência criminosa, por si só, não impede a aplicação do “princípio da insignificância”. Considerou que o “inexpressivo prejuízo” ao ofendido (vítima do furto) não justificaria a pena de prisão de um ano, somada a dez dias-multa.
Analisemos o contexto delineado por cada Tribunal, para que chegasse à sua própria decisão.
O que o Superior Tribunal de Justiça considerou como elementos integrantes do contexto (fatos, efeitos, circunstâncias, constatações), de modo a fundamentar a sua decisão? Levou em conta, dentre outras particularidades possíveis, que i) o réu já havia cometido crime anteriormente (reincidiu); portanto, não foi a primeira vez que violou a lei penal; e ii) houve prejuízo à vítima.
Acrescentaria ainda, por dedução, que o STJ teria pressuposto que, iii) a não-aplicação da norma penal, sem a devida autorização legal para casos excepcionais previstos, fragiliza a natureza preventiva do direito penal e retira-lhe a eficácia, quando se faz necessária a sua aplicação. Por que ter medo de praticar “pequenos delitos”, se nada acontece ao delinquente? Basta que a ofensa imposta à vítima seja “inexpressiva”. Não é verdade, ministro Lewandowski?
Por outro lado, o STF delimitou o seu “mundo real” pelas seguintes presunções: i) a reincidência na prática de delitos é irrelevante, se aquele crime primeiramente cometido tiver sido inofensivo para a vítima, ou se a lesão ocasionada também fora insignificante; ii) o furto de um aparelho de celular de 90 reais constituiu “inexpressiva ofensa” ao patrimônio da vítima; iii) se a ofensa foi “inexpressiva”, a vítima não sofreu prejuízo material; iv) ausência de lesão material não justifica aplicação de pena restritiva de liberdade, pois configura “constrangimento ilegal” do infrator.
Notamos que o contexto seletivo criado por cada Tribunal deriva do que querem enxergar, à luz da suprema ou superior “sabedoria” dos respectivos ministros. Significativo mesmo é o que se esconde na íntima consciência de cada um deles. O senso de “justiça” personalíssimo, manifestado em decisão conjunta da Turma, irá determinar quais serão as constatações de fatos e seus efeitos relevantes para o Direito.
Para o STF, por exemplo, é irrelevante se, para defender o seu posicionamento e firmar a sua autoridade judicial, vai precisar “jogar no ralo” a força normativa das regras contidas no art.3.º, da Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro (“Ninguém se escusa de cumprir a lei, alegando que não a conhece.”), no art.21, do Código Penal (“O desconhecimento da lei é inescusável. O erro sobre a ilicitude do fato, se inevitável, isenta de pena; se evitável, poderá diminuí-la de um sexto a um terço.”), ou, ainda, no art.5.º,II, da Constituição (“ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei.”).
Sim, porque o exercício da autonomia privada, fundado no dever de autorresponsabilidade, de agir no campo da licitude, inerente a qualquer pessoa residente no Brasil, transforma-se em “conversa para boi dormir”. Pois nada acontece se ultrapassarmos “só um cadinho” a fronteira do lícito, para cometermos “pequenos delitos”, “extremamente inofensivos”! É o “jeitinho judiciário brasileiro” atuando em prol do “pequeno delinquente”! A vítima do “pequeno crime”? Azar o dela: celular de 90 reais? Vale nada; “perdeu, garoto”!
Também posso deduzir que a regra proibitiva do art.345, do Código Penal, não tem serventia jurídica alguma para o Supremo. Particularmente, não compreendo: se é crime, passível de detenção, fazermos justiça pelas próprias mãos, como podemos aceitar que o órgão de cúpula do Poder Judiciário deixe de aplicar a regra que penaliza o furto, por mero voluntarismo de seus ministros, nitidamente visível na pífia fundamentação da decisão contrária à lei? Porque a consequência natural do desrespeito ao direito penal pelo STF será estimular o indivíduo lesado, desacreditado no Estado-juiz, a imprimir conscientemente a sua “justiça pessoal” àquele que o prejudicou, precisamente o que a norma penal pretende evitar.
É trágico e paradoxal percebermos, ainda, que a Corte Suprema transformou o criminoso, pela prática de furto, em vítima do crime de constrangimento ilegal (CP,146), justamente por ter arcado com as consequências do ilícito de sua autoria. “Ora, foi somente um “pequeno furto” de um “mísero” celular de 90 reais! Ser punido tão só por isso?” Irônico, não?
Independentemente do valor do telefone furtado, poderíamos especular: e se o aparelho fosse instrumento indispensável para o trabalho da vítima (por exemplo, corretor de imóveis ou motorista do uber)? O prejuízo material seria analisado em função do valor do celular, ou levaria em consideração potenciais lucros cessantes?
E se, ao invés de um telefone de 90 reais, o objeto do furto fosse um Iphone 7? “Ah, agora é diferente; Iphone 7 não é objeto de custo “insignificante”!”, poderia dizer algum ministro. Verdade. Mas, então, caro leitor, tomo a liberdade para dar-lhe um conselho: ter dinheiro também pode fazer a diferença, no que se refere à punição de algum delinquente que lhe furte o celular em dia de má-sorte. Se puder, sugiro que compre o mais caro e poderoso aparelho, para que o Judiciário e o “princípio da insignificância” não transformem em vítima o infrator que pegou para si o seu telefone “baratinho”. A qualidade do bem furtado, nessas terras, tem “vida própria”.
Curiosamente, nenhuma das Cortes levou em conta a possibilidade de o “pequeno furto” ter gerado algum abalo psicológico na vítima. O que estava armazenado na memória do “telefone de pobre” furtado? Havia contatos importantes? Frustrou-se alguma expectativa pessoal ou profissional da vítima, devido à subtração do celular? Será que o fato de o crime de furto, por sua natureza, ser consumado sem o emprego de ameaças ou violências à pessoa, representa característica suficiente para concluirmos pela impossibilidade de desencadear prejuízo psíquico ao indivíduo (síndrome do pânico, por exemplo)?
Diante deste exemplo real, que escancara para a população a total imprevisibilidade na aplicação do Direito, face à inexistência de uma teoria da decisão que restrinja o arbítrio judicial, volto à causa primária das divergências interpretativas e pergunto: é possível estabelecermos algum critério objetivo, para que juízes, desembargadores e ministros sejam contidos na manifestação de seu poder de recortar aleatoriamente a realidade dos fatos, visando à delimitação do contexto-base que fundamentará empiricamente a sua decisão?
Acredito haver um critério objetivo, passível de ser utilizado: o contexto fático deve ter, como ponto de partida, o comportamento que gerou efeitos e culminou no problema a ser resolvido. E, este problema, com as circunstâncias e consequências correlatas, poderá ser tido como o ponto final, delimitador do contexto.
No exemplo: qual foi o comportamento praticado que acarretou consequências diversas e sucessivas, ocasionando a prisão como desfecho? O furto. Neste caso, coincidiu de a conduta inicial ter sido de autoria da própria pessoa que havia sido penalizada. Mas poderia ter sido comportamento de terceiro, ou mesmo um caso fortuito ocorrido, se atrelado à negligência de alguém.
Ou seja, o julgador, obrigatoriamente, deve recortar a realidade que embasará a sua interpretação da lei, considerando todas as informações relacionadas à controvérsia e que sejam empiricamente constatáveis. Se a origem identificável do problema foi o crime de furto, o contexto necessariamente deve ser construído daí em diante.
A seleção arbitrária do contexto pelo Tribunal tem reflexo direto na definição do núcleo do chamado “princípio da insignificância”, elaborado pela doutrina penal alemã, para descaracterizar crimes considerados de “bagatela”. No Brasil, não há previsão constitucional ou legal que o sustente expressamente. Mas é conceito dogmático utilizado para afastar a aplicação da lei penal de casos concretos, segundo definições judiciais aleatórias do que seja “insignificante” ou “ausência de prejuízo para a vítima”.
É, portanto, uma causa secundária de divergências interpretativas sobre a escolha da mais adequada solução jurídica para o conflito sob julgamento. Digo secundária, por ser decorrente do uso de conceito dogmático inexistente expressamente em lei. Conceito de conteúdo incerto e oscilante, em função da subjetividade do intérprete, ou de sua intenção de criar, no momento, exceções à aplicação da norma penal.
O círculo é vicioso: a seleção arbitrária dos fatos (integrantes do contexto da realidade que justifica empiricamente cada decisão) condiciona o significado da expressão “insignificância”, e alimenta as variedades interpretativas. Inversamente, a opção do juiz por usar conceitos doutrinários de conteúdo aberto ou indefinido, como premissa para construir a sua argumentação e a consequente decisão, legitima-o, implicitamente, a buscar apenas os dados fáticos de seu interesse, de modo que a sua interpretação vá ao encontro de seus valores morais ou de sua ideologia política.
Moral extraída do exemplo: interpretação jurídica no Brasil é ato de pura liberalidade do intérprete! Contrariar o texto da lei, deixando de aplicá-la, é juridicamente “insignificante” frente à criatividade interpretativa à brasileira para justificar o injustificável ou deixar o dito pelo não-dito!
Post Scriptum (29/07/2017). O que escrevi se encaixa ao ensinamento do excelente jurista italiano Riccardo Guastini, que considera o principal problema relacionado à interpretação como sendo a dificuldade na identificação do significado mais adequado a ser atribuído pelo intérprete aos textos da lei. Ou seja, a identificação da norma geral (direcionada a todas as pessoas) e abstrata (aplicável a todas as situações similares) que a redação legal expressa e que seja aplicada ao caso pendente de solução.
Uma das razões da divergência de opiniões entre especialistas está no fato de o intérprete, muitas das vezes, ao fazer a interpretação da redação da lei, normalmente expressa em linguagem comum ordinária, valer-se da linguagem especificamente jurídica, conhecida como construção dogmática (como o conceito da expressão “salário”, do direito do trabalho, ou de “inexpressivo prejuízo” ou “princípio da insignificância”, no direito penal, como no exemplo).
Como as definições conceituais ou delimitações de conteúdo das construções dogmáticas são fluidas ou indeterminadas, a mensagem transmitida pelo legislador nos textos da lei, escrita em linguagem comum, acaba tendo o seu sentido condicionado não apenas por interesses práticos, mas, sobretudo, pelas pressuposições filosóficas e políticas de cada intérprete (juiz, advogado ou jurista).
Busca, portanto, atribuir um significado que se enquadre ao seu “entendimento”. Inicia-se a interpretação pela conclusão (convicção pessoal); a seguir, recorta-se a realidade para delimitar o contexto ideal dos fatos; ao fim, identifica-se o significado do texto normativo.
No exemplo que tratei, o legislador declarou ser proibido furtar, porque, quem o fizer, poderá ser condenado e preso. Contudo, o STF utilizou-se de “construção dogmática”, dando ao texto legal que tipifica o furto (CP,155) o seguinte significado: é proibido furtar, exceto se o objeto do furto for um celular de 90 reais, pois causa inexpressivo prejuízo material à vítima, e prender o infrator seria constrangê-lo ilegalmente (CP,146). A Suprema Corte legalizando o furto de celular. Incrível, não?
Por isso, está coberto de razão Riccardo Guastini: “Os juristas são capazes de tornar equívoco qualquer texto legal, cuja interpretação seria de todo pacífica em contextos não-jurídicos.” (Nuevos estúdios sobre la interpretación. Ebook Kindle. posições 2698-2708.)