“Troca de farpas” entre Bolsonaro e Maia: culpa da “descoordenação” do Governo?

Renato R Gomes Administrador

Em reportagem publicada hoje, 25/03/2019, no Estadão, “cientista” político da USP

analisou a troca de farpas entre Bolsonaro e Rodrigo Maia. Chegou a algumas conclusões. 1) O atrito sinaliza “descoordenação” e “desgaste natural” do Governo. 2) Que o Presidente “precisa entender” que a retórica contra a velha política não abriu espaço para a nova política. 3) Que o regime democrático envolve “negociação” com partidos e representantes do povo. 4) Que os “projetos prioritários para o governo”, como a reforma da previdência, podem desandar. 5) Que o papel do Legislativo é “fiscalizar o Executivo”, e, o do Judiciário, “monitorar” a ambos do ponto de vista dos “princípios constitucionais”, não podendo tais funções serem contestadas, pois se perderia a “dimensão central da democracia.”

Quando li esses comentários, lamentei intimamente pela mediocridade do teor e pelo consequente atentado ao intelecto de quem se dá ao trabalho de raciocinar com honestidade intelectual. Como contraponto, exponho três observações a respeito desses cinco aspectos críticos.

Primeira delas. Falar que a causa das farpas foram a “descoordenação” e o “desgaste” traduz duas mazelas embutidas implicitamente na análise: i) o professor “cientista” desconhece o principal papel do Congresso; e ii) não sabe o que seja a nova política. É juridicamente notório: aprovação de projetos de lei e propostas de emendas constitucionais é de competência exclusiva do Congresso Nacional. Sim, é atribuição do Governo enviar à Câmara dos Deputados os projetos de seu interesse, umbilicalmente ligado às necessidades imperiosas de satisfazer o equilíbrio orçamentário estatal, por este condicionar, no futuro, a garantia de direitos de natureza financeira dos cidadãos, tais como aposentadorias, pensões e benefícios assistenciais.

Feito isto, são ainda deveres políticos implícitos e inerentes ao Governo i) dar publicidade às medidas propostas ao Congresso, explicitando-as e justificando-as à população, e ii) apresentá-las aos parlamentares, igualmente fundamentando-as com dados empíricos e tirando-lhes dúvidas pertinentes e que envolvam tanto os textos dos projetos, como as impugnações incidentes sobre as reais necessidades das medidas propostas e seus correspondentes reflexos financeiros e sociais, positivos e negativos, caso rejeitadas ou aprovadas.

Até então, a comunicação governamental com povo está afônica. Quanto ao conhecimento das propostas pelos Deputados, presumo que tenham ciência dos conteúdos. Até porque, em nenhum momento, salvo engano, algum Deputado levantou alguma objeção que não fosse fundada em especulações futurísticas e de fundo ideológico. Daí, óbvio que institucionalmente o “recém-nascido” está no colo do Rodrigo Maia. Se ele morrer de inanição, será responsabilidade predominantemente dele, na posição de Presidente da Câmara, titular do poder de “alimentar o bebê”. Afinal, leis são aprovadas no Congresso Nacional.

Num país sério, nenhuma ingerência tem o Presidente da República sobre o voto consciente e ideológico do parlamentar. Mas o Presidente da Câmara, mesmo sabedor de que ninguém convence ninguém que não queira ser convencido, reclama da falta de engajamento do Presidente da República na “articulação” ou “negociação”, visando ao “convencimento” dos Deputados. E estes mostram-se “magoados” pela carência das negociatas com as quais se empapuçavam.

Gostaria de saber: “negociar” o quê, tendo em vista que todas as “suas excelências” são conhecedores da matéria, e o fato de o Presidente já ter eliminado quaisquer hipóteses de obter votos parlamentares via fisiologismo espúrio? Se “negociar” significar “apresentar-se para buscar a persuasão de potenciais apoiadores da reforma, expondo-lhes razões republicanas, ok; legítimo; cordialidade política e republicana aceitável e até recomendável. Mas ao Presidente da República, para bem cumprir o seu papel, compete tão só comunicar-se direta e eficazmente com a população, pelos canais adequados (cadeia nacional de rádio e TV, ao vivo, e, complementarmente, por suas “lives” na internet e redes sociais) e usando de clareza, autenticidade e empatia com a qual se conecta precisamente aos anseios populares. Como a proposta prioritária já fora entregue à Câmara dos Deputados, fim de papo nos termos da velha política: deu-se início à inserção da nova política no jogo democrático e posta a guilhotina na cabeça da velha, que se estrebucha e resiste ao definhamento.

Então, querer vincular “descoordenação” e “desgaste” do Governo (que sequer tem três meses de existência) aos atritos com a Câmara dos Deputados não passa de pura manifestação de miopia política, de leitura pueril da realidade, decorrente da intenção obscura de empurrar para o Presidente da República uma responsabilidade exclusiva que, por ora, é da Câmara dos Deputados.

Também se mostra bastante rasa a alegação de que o Governo não “negocia” com partidos e representantes do povo como nas Democracias verdadeiras. Além de o “cientista” não dizer qual seria o tema específico a “negociar”, por essas terras está longe de vigorar um regime democrático por essência. Como mau hábito de “especialistas” tupiniquins, é comum lançar ao léu críticas genéricas, retóricas e vazias, tidas facilmente como débeis aos olhos de quem enxerga a situação nas entrelinhas.

Desnecessário lembrar, mas o faço para enfatizar: na “democracia” de fachada ou Cleptocracia brasileira onde preponderou unicamente a velha política até ontem, “negociações” sempre tiveram objetos ilimitados. O céu era o limite. Será que o “cientista” político jamais soube disso? Na nova política, incompreendida pelo professor, “projetos de interesse do Governo” serão inevitavelmente projetos de interesse dos cidadãos, da sociedade e do país. Naturalmente, se o Governo cumpre com proficiência o seu dever de comunicação caseiro, entrega ao Legislativo os projetos prioritários ao desenvolvimento sócio-econômico do país e, ainda assim, o processo legislativo “desanda”, que respondam os congressistas pelas consequências de suas decisões políticas propositalmente obstrutivas.

Segunda observação. Disse ainda o “cientista” político que a função do Legislativo é fiscalizar o Executivo. Correto; mas é função secundária e aventada de forma descontextualizada e com total impertinência neste momento. Fiscalizar o que por agora? Nada. A Câmara dos Deputados tem mais é que discutir e votar a matéria que o Executivo encaminhou-lhe em mãos. Mas o professor deve ter associado a função de “fiscalizar” ao fato de o Governo “negociar” ou não algo que ele próprio ignora. Notou o professor que o Rodrigo Maia “fiscalizou” o Bolsonaro e se incomodou por inexistir a “negociação” que almejava. “Negociação” de objeto desconhecido, porque supostamente não teria o propósito de sanar dúvidas ou de elucidar questão técnica primordial à “sensibilização” do Deputado e ao seu autoconvencimento “consciente”. Presumo ser este um dos poderes fiscalizatórios do legislador acostumado aos vícios da velha política. Velha política que suponho embasar a perspectiva política do professor e a da grande imprensa, que qualifica a análise feita pelo douto como sendo de “especialista”.

Terceira observação. Deturpada a afirmação de que o Judiciário deve “monitorar” a ambos, baseando-se nos “princípios constitucionais”, que, na verdade, não passam de normas a serviço da manipulação arbitrária do Direito pelos “intérpretes”. O Judiciário não monitora o Executivo, nem o Congresso Nacional. A Justiça apenas dirime controvérsias jurídicas, caso levadas à sua apreciação. O STF, na teoria, é guardião constitucional; não, poder moderador. Na prática… Mas o Presidente da República, o da Câmara dos Deputados e o do Senado Federal igualmente são guardiães. Todos se comprometeram a respeitar a Constituição. O equilíbrio entre Poderes só pode efetivamente existir exatamente pela possibilidade de haver controle de um Poder sobre o outro. No Brasil hodierno, isto é ficcional. Estamos sob a ditadura do Supremo Tribunal Federal, sem que o Senado ou o Executivo ajam para restringir o ativismo invasivo de suas respectivas competências. O Senado, porque via de regra não o quer (impeachments de ministros; CPIs; PECs); o Executivo, por não saber como tolhê-lo legitimamente, apesar de excelentes ferramentas em mãos. Ferramentas heterodoxas, mas presumidamente eficazes para recompor a harmonia entre Poderes, flagrantemente ameaçada pelo STF atual.

Conclusão. Sob o enfoque da nova política, o Governo precisa tornar eficaz a sua comunicação com a sociedade e negociar apenas ajustes nos textos das propostas legislativas, se, na sua visão, a negociação for juridicamente válida, politicamente cordial e moralmente séria, e tiver a capacidade de gerar aperfeiçoamentos sócio-econômicos benéficos aos cidadãos e ao país. Afora isso, a “criança” deve ser “gestada” pelo Congresso Nacional. Se a Câmara ou o Senado decidirem abortá-la, que Deputados e Senadores assumam os efeitos políticos de seus atos.