Três fatos juridicamente interessantes; todos analisados e interpretados, com viés de miopia do ministro, do jurista e do juiz.
Centra-se integralmente a atenção em alguns aspectos selecionados intencionalmente do contexto, que são presumidamente do agrado pessoal e ideológico de cada um, ou conforme a respectiva crença individual, estapafúrdia ou não. “Esquece-se” das demais circunstâncias, ou as omite arbitrariamente, porque, caso contrário, a interpretação de preferência seria de difícil ou mesmo de impossível justificativa coerente. Tal como um míope com grau dez, que se recusa a usar “superóculos” ou a fazer cirurgia a laser para corrigir a cegueira para objetos à distância. O que os olhos não veem (da realidade que não lhe interessa), o coração não sente (a pancada na vaidade e no orgulho, que o coagiria a sofisticar a argumentação a contragosto, ou a abrir mão do apego ao próprio conhecimento fechado, mudando sua “convicção”, em prol de uma nova fundamentação sistematicamente sustentável, vindo à reboque uma autoimagem envergonhada, por ter assumido um erro que atingiu em cheio o seu Ego). Aos fatos.
Fato 1. Contribuição sindical obrigatória foi revogada pela reforma trabalhista, tornando-se, agora, facultativa (CLT,579, redação dada pela Lei 13.467/2017). Obviamente, enxurradas de petições protocoladas no STF por entidades sindicais, instaurando ações diretas de inconstitucionalidade (ADIN), para que o Supremo declare “inconstitucional” a revogação legal da compulsoriedade – até então vigente – da contribuição. Ou seja, as entidades insatisfeitas com a extinção legal da receita fácil (automática) às custas do coitado do trabalhador pretendem que a Corte, implicitamente, diga que o legislador está proibido de extinguir espécie tributária que entenda ser juridicamente inadequada para o momento atual da sociedade. Relatorias com o ministro Fachin, que, a princípio, já declarou posicionamento: o fim do imposto sindical obrigatório constitui lesão “grave” a direitos “fundamentais” sociais, “e repercute, negativamente, na esfera jurídica dos trabalhadores”.
Fato 2. Esterilização compulsória de mulher com 8 (oito) filhos menores, pedida por promotor de justiça e deferida pelo juiz da causa. Peculiaridades do caso: mulher consentira; três dos filhos estão sob a guarda do primeiro marido, viciado em drogas; outros três foram adotados por terceiros; um bebê foi entregue igualmente para adoção; e uma adolescente encontra-se em abrigo social. Para o jurista, Oscar Vilhena, e defensoria pública de São Paulo, pelos argumentos que apresentaram, pouco importa(va) tais “detalhes irrelevantes”: houve supressão de “direito fundamental” da mulher.
Fato 3. Cidadão, portador de doença grave, teve negado o tratamento pelo Bradesco Saúde, apesar de seu plano contratado garantir-lhe. Motivo da recusa da autorização: a seguradora questionou o remédio (caríssimo) recomendado pelos médicos. Inevitável: na qualidade de consumidor lesado, ingressa com ação no juizado especial cível, no Rio de Janeiro, pedindo, por seu advogado, tutela antecipada, face à urgência do tratamento. Juíza não só a defere, como a ratifica na sentença. Em suma, a seguradora foi coagida judicialmente a custear um tratamento de aproximados 37 mil reais. Legítima a decisão. Bradesco recorre; 3.ª Turma Recursal, por unanimidade, ratifica a sentença e, ainda, condena o recorrente ao pagamento de honorários advocatícios, equivalente a 20% sobre o valor da condenação. O advogado tentou executar seus honorários e – pasmem! – a juíza indeferiu o pedido. Inacreditável e paradoxalmente, para “sua excelência”, Sonia Maria Monteiro – a mesma que, na sentença, obrigara o Bradesco a bancar o procedimento médico indispensável -, “obrigar o réu a pagar o preço do tratamento” não seria “condenação”, a qual estabelecera a Turma Recursal como base para o cálculo dos honorários. Para a “meritíssima”, logicamente, 20% de (condenação) zero é zero. Por ato decisório de força, ignorou propositalmente toda a argumentação do advogado, recusando-se a responder sobre as inconsistências apontadas no seu fatídico “entendimento” (Processo 02916756220178190001, 27.º JEC-RJ).
Tenho por inquestionável que os fatos referidos apresentam falhas de argumentação dos intérpretes. Demonstram a fragilidade com que o “direito” é produzido hoje e justificam o descrédito jurídico que assola o país. O ministro Fachin deixou a entender que tende a considerar inconstitucional o fim do imposto sindical compulsório, porque “viola” gravemente direitos constitucionais sociais e dos trabalhadores. Por outro lado, em nenhum momento mencionou – e não o fará, aposto eu – por que o Parlamento, composto, na teoria, por representantes dos cidadãos, não pode extinguir impostos anacrônicos, se compete exclusivamente a ele criar ou revogar regras tributárias (CF,24,I). Não bastasse, qualquer alegação no sentido de que a manutenção do regime sindical vigente é “direito fundamental social” do trabalhador não passa(rá) de puro subjetivismo ou retórica com fundo ideológico.
Também o Oscar Vilhena, ao comentar o fato 2, não deu a menor relevância à abordagem do abandono notório dos filhos menores pela mulher submetida ao procedimento de laqueadura. Descumprimento dos deveres legais de mãe, previstos na Constituição (227) e no Código Civil (1638), e desrespeito aos direitos da criança, fixados igualmente na Constituição e no Estatuto da Criança e do Adolescente (3.º a 5.º), como dignidade, saúde, educação, alimentação, convivência familiar e lazer? “Bobagens; sou autoridade; eu digo o que é o ´direito´!”
Se, segundo o próprio STF, não há direitos absolutos (sequer a vida é direito absoluto, porque há possibilidade de pena de morte em caso de guerra: CF,5.º,XLVII,a), por que existiria direito absoluto à procriação irresponsável, assegurada a qualquer mulher, sem qualquer relação com o fim de planejamento familiar, independentemente de não possuir as mínimas condições financeiras (dado objetivo) e morais (dado objetivável pela constatação empírica da negligência para com o cumprimento dos deveres de mãe, dos vícios, das prisões por comportamento ilícito)? A dignidade da mulher submetida à esterilização é infringida, porém, a da prole negligenciada e abandonada não seria? A imposição legal da perda do poder familiar, estampada no código civil, devido a abandono (1638,II), à imoralidade contumaz (1638,III) ou à entrega de filhos à adoção (1638,V), em nada influencia o intérprete na atividade de interpretação? É isso mesmo, “Doutor”?
Com similar miopia interpretativa, a juíza Sonia Maria Monteiro, protagonista do fato 3, voluntariosamente, negou-se a justificar por que uma ordem de pagar um tratamento de 37 mil reais, imposta ao réu por ela mesma, não constitui espécie de condenação, sobre a qual deveria ser calculado o valor dos honorários do advogado. Obviamente, também não disse por que a Turma Recursal fixaria os honorários sobre valor de condenação, se esta inexistisse. Presumira ser “normal” os juízes do órgão colegiado decidirem sem ler as folhas do processo?
Se a miopia interpretativa jorrasse os seus efeitos deletérios somente sobre o próprio intérprete, seja Ministro, jurista ou juiz, não haveria qualquer razão para ser criticada. Mas, lamentavelmente, longe disso! Além de gerar completa instabilidade jurídica, ao tornar a interpretação espécie de loteria judicial e doutrinária institucionalizada, legitimando oficialmente a insegurança jurídica e correspondentes decisões-surpresa e juridicamente imprevisíveis, ela afeta diretamente os que, na verdade, são as vítimas do desrespeito a seus direitos concretamente existentes: os trabalhadores, que têm seus baixos salários mordidos por impostos sindicais, destinados, em grande parte, ao financiamento de sindicatos nada representativos de seus direitos sociais (fato 1); os menores negligenciados por mães irresponsáveis, largados à própria “sorte” (fato 2); e os advogados, aviltados em seu direito remuneratório, de natureza alimentar, pelo capricho da vontade (“entendimento”) de uma minoria de juízes “semideuses”, que faz o que faz pela certeza de que nada lhe acontece (LOMAN, LC35,41), pela falta de vocação para a nobre tarefa de pacificar conflitos ou, talvez, pela deficiência no senso de autorresponsabilidade funcional.
O tempo passa e os acontecimentos, para meu desprazer, vão corroborando o que venho defendendo, em texto e vídeo: temos um “direito” esquizofrênico, o qual denota a interpretação manipulativa das leis, a inefetividade da aplicação ou a não-aplicação voluntarista das normas, culminando na Anarquia dissimulada de democracia em que vivemos atualmente.
Solução? Passa necessariamente pela conscientização do intérprete. Conscientização de que é inaceitável se falar em Estado de Direito, quando, no dia a dia, o que mais se assiste é o descumprimento de regras, sem qualquer consequência jurídica que iniba eficazmente a reincidência dos maus comportamentos (ilícitos). Curiosamente, conscientização que a população leiga, em sua maioria, baseada no senso comum do que se espera do Direito, possui. Mas que “especialistas”, respaldados em títulos acadêmicos ou no poder do cargo, e aferrados em teorias sofisticadas e crenças consolidadas, fazem questão de mantê-la adormecida, a fim de poderem sustentar incólume o atendimento de suas preferências e ideologias e, naturalmente, alimentar fartamente a autovaidade.
Surge, daí, outro problema: somente é capaz de autoconscientizar-se o homem bom caráter, humilde, aberto a novos conhecimentos, e com virtudes pessoais como integridade, empatia e altruísmo. Virtudes são ensináveis; podem ser absorvidas pela verdadeira educação colocada em prática, a qual jamais inexistiu no Brasil, como já frisava o filósofo e educador Huberto Rohden há mais de 40 anos. Ou seja, Direito do qual possamos nos orgulhar, somente emergirá algumas gerações à frente, com o marco zero da esperança iniciado logo após a implementação de um sistema de ensino com conteúdo decente e que focalize a formação de bons cidadãos. No momento, a espiral jurídica viciosa se expande fortemente, testando o grau de resiliência e tolerância dos brasileiros.