Novamente a presunção de “inocência”:
os ministros não sabem interpretar e, muito menos, têm compromisso com a boa argumentação, a qual também são incapazes de identificar de antemão. A insegurança jurídica gritante e causada pelo Supremo de hoje é denotativa.
Estou cada vez mais convencido de que os “especialistas” do “direito” brasileiro fazem inconscientemente confusão entre o “ter conhecimento armazenado na memória” e o “ter capacidade de apresentar uma solução jurídica adequada”. Em outras palavras, acham que, por se considerarem “juristas”, conseguem “interpretar” melhor do que qualquer outro cidadão alfabetizado. Resumindo, creem serem os donos da “verdade” jurídica. Longe, mas muitíssimo longe disso!
Um exemplo do momento: a decisão do STF, de 07/11, que modificou a interpretação do art.5.º,LVII, da CF, passando a proibir a execução da pena após condenação criminal confirmada pela segunda instância do Judiciário. Vou ignorar a obviedade intuitiva que a alteração do “entendimento” de Toffoli e Gilmar – que há três anos e sem qualquer mudança contextual pensavam diferente – presumidamente tenha se dado por razões moralmente inconfessáveis (soltar Lula, proteger comparsas da política, dentre outras congêneres). Apenas demonstrarei que a “interpretação” atual “vencedora” foi baseada em argumentação débil, por desatender a quatro fatores objetivamente verificáveis: i) fator jurídico (unidade do Direito); ii) fator lógico (validade); iii) fator metafísico (verdade pautada pelo estado cognitivo); e iv) fator epistemológico (grau de plausibilidade entre as premissas de base e a conclusão). Apostaria que a grande maioria deles desconhece os requisitos elementares para se utilizar determinadas técnicas de argumentação jurídica (para atenderem o fator jurídico da unidade do Direito) e, também, ignoram pressupostos fundamentais para a construção de uma boa argumentação (que obedeçam aos fatores lógico, metafísico e epistemológico).
Sintetizo a argumentação dos seis ministros bandidólatras no seguinte encadeamento de raciocínio (silogismo):
Premissa maior. A Constituição (5.º,LVII) diz que somente há culpa em razão de condenação criminal, quando a decisão condenatória tornar-se definitiva (o que se entende por “trânsito em julgado”).
Premissa menor. A condenação em segunda instância não é definitiva, não havendo, por isso, culpa formada do réu.
Conclusão. Se não há decisão condenatória definitiva (transitada em julgado) em segunda instância, não há existência de culpa. Logicamente, a Constituição proíbe o início do cumprimento da pena fixada ou confirmada pelo tribunal.
Em discussão informal com um amigo, escutei dele: “Renato, pode-se não gostar, mas a interpretação dos seis ministros em prol da proibição do cumprimento da pena após condenação em segunda instância é aceitável, com base no que está escrito no inciso LVII, do art.5.º”. Disse para ele: “Não; ela é jurídica, empírica e logicamente insustentável. Mas compreendo o que você está dizendo, porque é exatamente o que pensa muita gente com formação em ‘direito’. Pensa assim, pelo simples fato de ser inapta para diferenciar ‘interpretação’ de ‘manipulação’, tal como os próprios ministros supremos igualmente o são. Noutra hora lhe demonstro isso.” Nosso papo rápido se encerrou tranquilamente. Neste momento, busco então cumprir a promessa que fiz a meu amigo, desmascarando a falsidade da tese “constitucional” que passou arbitrariamente a vigorar, devido à violação dos quatro fatores mencionados. Neste texto, atenho-me exclusivamente à dessintonia com o fator jurídico. Ao ponto.
Desprezo pelo fator jurídico. Os defensores da tese pró-bandidagem utilizam tão somente a técnica de interpretação jurídica, conhecida como argumento contrario sensu. Na prática: “Ninguém será considerado culpado antes do trânsito em julgado da sentença penal condenatória. Contrario sensu, se não há ainda trânsito em julgado, a presunção é de inocência.”
Ocorre que o requisito fundamental para que essa técnica seja empregada não foi preenchido: é indispensável que a finalidade que fundamenta a existência do art.5.º, LVII, da Constituição, seja única e identificável inequivocamente, sem margens para subjetividades, inexistindo qualquer dúvida em relação à sua determinação.
Hipoteticamente, se há um artigo de lei que diz “Salvo casos de extrema urgência ou emergência, em ruas movimentadas, nenhum automóvel poderá avançar o sinal vermelho”, a finalidade mostra-se objetivamente induvidosa: evitar acidentes (atropelamentos, batidas, danos a terceiros de todo tipo). Seria, portanto, juridicamente viável o uso do argumento a contrario: “Em ruas sem movimentos de pessoas ou carros, pode ser justificável o avanço do sinal vermelho.”
De volta ao caso concreto. Para que os seis ministros pudessem concluir em sentido contrário ao conteúdo do art.5.º, LVII (é proibida a prisão para cumprimento da pena após condenação em segunda instância, caso não haja o trânsito em julgado), deve haver a presumida certeza de que, não apenas a redação do texto constitucional, mas também o sistema jurídico em sua integralidade (com a consideração de todas as normas vigentes e pertinentes ao caso), tenham como juridicamente impossível a imputação de culpa ao acusado antes do encerramento do processo penal.
Efetivamente, ocorre o oposto: não só semanticamente o texto do art.5.º, LVII, da CF, não proíbe o início do cumprimento da pena antes do trânsito em julgado (“ninguém será considerado culpado” tem significado diverso de “ninguém poderá ser preso para início da execução da pena”), como há outras normas de direito que reconhecem a culpa do agente antes do trânsito em julgado.
Como exemplo, cito três artigos de lei: i) os artigos 302 e 303, do CPP (Código de Processo Penal), que autorizam a prisão em flagrante (prende-se precisamente em razão da culpa presumida pelo crime cometido e flagrado); ii) o artigo 395,III, do CPP, que exige a comprovação de “justa causa“ (indícios de autoria, da ilicitude, da culpabilidade) pelo promotor de Justiça ou procurador da República, para que sua petição de denúncia esteja fundamentada em provas consistentes e, daí, seja deferida pelo juiz criminal; e iii) o artigo 59, do CP, que impõe ao juiz, na ocasião em que for fixar a pena do réu em sentença, o dever de levar em conta a sua “culpabilidade”.
Quando se ensina no primeiro semestre da faculdade de “direito” que o Direito é uno, um sistema coerente e unitário, sendo dividido em ramos (civil, trabalhista, penal…) apenas para facilitar seu estudo, não deveria ser “ensinado” da boca para fora. Aliás, deveria ser ensinado por professores que tivessem verdadeira consciência do que falam. Lamentavelmente, não é o caso. A unidade do Direito, de fato, é desdenhada.
Presumida objeção: e o art.283, do CPP, que expressamente proíbe a prisão antes do trânsito em julgado? Digo o seguinte: o legislador supostamente extrapolou no seu poder de legislar. Não diria que a regra deva ser necessariamente declarada inconstitucional (o que o STF não fez), mas, sim, que a sua aplicação deverá ser avaliada caso a caso. Duas razões.
Primeira: a regra contida no art.5.º,II, da CF, de modo expresso, atribui a todo brasileiro o dever de autorresponsabilidade, ao afirmar ser proibido atuar ilicitamente. Se é proibido, mas o sujeito comete um crime, estando ausentes quaisquer justificativas excludentes, e, ainda e apesar disso, “especialistas” idealizam e fabricam uma “garantia” individual de cumprir a pena sabe-se lá Deus quando e independentemente da atrocidade cometida, na verdade, significa que a vedação constitucional de agir ilicitamente não passa de um dever “café com leite”, para inglês ver.
Atualmente, esse é um drama que assola o “direito” brasileiro: a “interpretação” jurídica bizarra que ora sim, outra também, estupra a Constituição. Muda que é, admite ser violentada caladinha, e os “especialistas” estupradores são os primeiros a fazerem-se de vítimas, autoproclamando-se os maiores cavalheiros constitucionais!
Segunda: o direito fundamental à segurança, expresso no art.5.º, caput, da CF. Segurança de quem? Naturalmente, do cidadão ofendido, agredido, lesado, pelo acusado criminalmente. Segurança, no sentido predominantemente cognitivo: o indivíduo só terá confiança no sistema de Direito se, ao sofrer uma lesão por parte de outrem, o Estado lhe der uma resposta jurídica eficaz.
Aliás, em se tratando de crime sofrido, a efetividade da resposta é imprescindível. Não por acaso, a vingança privada é tipificada como crime no art.345, do CP (proibição do exercício arbitrário das próprias razões). Nítido contrassenso, portanto, a criação de uma regra legal que dificulta ao máximo a resposta estatal ao cidadão lesado ou a sua família, caso tenha sido morto.
Para os que adoram mencionar a tal “cláusula pétrea” da “garantia individual” (CF,60,§4.º,IV), digo: impedir a prisão de criminoso viola, sim, a garantia individual da vítima em ter a sua confiança (segurança cognitiva) no sistema jurídico-penal protegida, pois o próprio Estado o proíbe de dar o seu jeito pessoal (CP,345).
Encerro com uma convicção: o Nassim Taleb tem total razão ao afirmar inexistirem especialistas em assuntos dinâmicos (tais como Direito, Economia, Sociologia…), cujos estudos e prognoses se baseiam em teorias que recaem sobre fatos passados e não repetíveis no futuro. A inoperância moral e socialmente inaceitável do sistema jurídico-penal brasileiro, perceptível intuitivamente por qualquer cidadão íntegro, leigo ou analfabeto, e para a qual os tais “especialistas” fazem vista grossa quando não também dela interesseiramente se locupletam, fala por si.
Referências: Desidério Murcho. Pensar Outra Vez: Filosofia, Valor e Verdade. E-book kindle; Humberto Ávila. Constituição, liberdade e interpretação. 1.ªed. São Paulo: Malheiros, 2019; Juan Antonio Garcia Amado. Sobre el argumento a contrario en la aplicación del derecho. Doxa 24; Miguel Polaino-Orts. Lições de direito penal do inimigo. São Paulo: LiberArs, 2014; e Nassim Nicholas Taleb. A lógica do cisne negro. E-book kindle.