Tenho o artigo do jurista Lenio Streck como alvo de minha análise. Título: “Livre apreciação da prova é melhor do que dar veneno ao pintinho?”, publicado em 13/07/2017.
O autor o inicia com crítica ao uso de teorias de probabilidade para a tomada de decisões judiciais. Afirma que condenações não podem depender de “cálculos de probabilidades”. Esta afirmativa é óbvia: direito não é matemática; comportamentos humanos não são números. Consequentemente, não há fórmulas para se definir pela condenação ou absolvição de alguém.
Mas o problema está nas entrelinhas; é subliminar; (quase que) imperceptível. Ao fazer essa declaração, o jurista pretende deixar a entender (pelo menos, para mim) que a condenação do ex-presidente pelo juiz Sérgio Moro foi baseada em probabilidade de ter cometido o delito de corrupção passiva e lavagem de dinheiro. Essa opinião é subjetiva; não tem base empírica. Demonstro com dois argumentos.
Primeiro: a condenação de qualquer réu sempre dependerá de probabilidade; mas, não, no sentido puramente matemático ou estritamente dependente do resultado de algum cálculo ou de certa teoria. É uma probabilidade natural e decorrente de haver mais de uma possibilidade de resultados diferentes. Porque, ou o réu será absolvido, ou condenado. Ou isto não é espécie de probabilidade?
Agora, qual a chance percentual ou estimada de o réu ser absolvido ou condenado, será a análise das provas que irá dizê-la. Especificamente, vai depender da contundência das provas produzidas e do grau de coerência fática e normativa da narrativa construída pelo juiz em torno do contexto probatório. (Recomendo Michele Taruffo. Uma simples verdade. O juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p.236-278.)
Provas boas? Alta probabilidade de ser o réu condenado. E vice-versa. Boas? Ruins? Como qualificá-las? Volto ao ponto: será a coerência normativa da fundamentação da sentença, com pleno respaldo nos fatos comprovados, que permitirá classificar a prova usada como “boa” ou “ruim”.
Entra em cena o segundo argumento: a probabilidade da absolvição ou condenação está intrinsecamente relacionada ao exercício do poder decisório e discricionário do juiz. Se há, por exemplo, duas respostas juridicamente adequadas para solucionar a controvérsia, o resultado dependerá da ideologia política ou moral do julgador, as quais exercem influência na interpretação que faz dos textos legais.
Para ilustrar, trago a hipótese mencionada pelo jurista Dimitri Dimoulis: “os tribunais são chamados a decidir se para crime cometido em lugar sujeito à administração militar (e/ou por militares) aplica-se sempre a legislação penal militar ou se deve também ser aplicada a lei penal geral, caso mais recente e benéfica ao réu.”
É hipótese típica de conflito entre normas, passível de surgir quando duas delas têm a mesma força jurídica formal (no caso, as duas têm força de lei ordinária federal) e a mais antiga (anterior), em algum aspecto, é mais específica no detalhamento da situação regulamentada.
Em teoria, o julgador pode construir solução normativamente coerente, tanto defendendo a aplicação da lei penal militar mais gravosa, por sua especificidade no regramento de crime praticado por militar e em ambiente militar (HC 91.767 e 91.759), como justificando a prevalência da lei penal comum mais recente e branda (HC 92.961), argumentando não haver razão jurídica para tratamento desigual e violador da dignidade do réu, pela mera circunstância de o infrator ser militar ou estar em área militar, se o crime, em essência, é idêntico em ambas as leis.
Desde, naturalmente, que inexista decisão a respeito já pacificada em tribunal superior, cujo entendimento necessariamente teria que ser observado pelo juiz, para que fosse garantida a previsibilidade e a segurança jurídica na aplicação do Direito. (Dimitri Dimoulis. Direito Penal Constitucional. Garantismo na Perspectiva do Pragmatismo Jurídico-Político. Belo Horizonte: Arraes Editores, 2016. p.21-22.)
A seguir, Lenio Streck frisa, enfaticamente, que “Direito sem teoria da decisão vira irracionalidade na veia”. Está certo o professor nesta conclusão. Contudo, fez essa afirmativa, partindo de crítica que nada tem a ver com o modo racional como o juiz constrói sua decisão judicial. Pressupôs que decisão tomada com lastro em “cálculos de probabilidades” não atende qualquer critério teórico e objetivo, o que deixa a possibilidade de condenação do réu à mercê do acaso. Mas aposto que nenhum julgador, em sã consciência, decide baseado em probabilidade estatística. Eis o ponto.
Em qualquer teoria da decisão judicial que se deseje levar a sério, o que efetivamente importa é a maneira como o juiz costura, pela interpretação, os textos normativos e os fatos comprovados no curso do processo. Se for capaz de formular narrativa juridicamente coerente e com sustentação robusta nos fatos, atacar a sua decisão como se fosse arbitrária não passa de inconformismo subjetivo e infantil do jurista da ocasião.
Para se desconstruir, por argumentação, uma decisão bem estruturada, não basta ao teórico apresentar argumentos de autoridade, resgatar doutrinas seculares, ou tentar desqualificar novas teorias adotadas pelo juiz na elaboração de sua fundamentação. Esse comportamento costuma ser genérico e retórico, mostrando-se normalmente juridicamente inapto para evidenciar suposto erro de julgamento.
O insatisfeito com a decisão deve, sim, ter a habilidade de identificar, com precisão, o suposto “remendo argumentativo” feito pelo juiz, e encorajar-se para desfazê-lo, descolando ponto a ponto cada “remendo” apontado. Pelo propósito de estimular o debate voltado ao aperfeiçoamento do Direito, o jurista inconformado tem o dever moral de escancarar, em minúcias, a “ferida” na argumentação judicial, para que os demais interessados – pessoas leigas, estudantes ou especialistas – a reconheçam.
Tem, principalmente, o dever de apresentar uma solução substituta ainda mais coerente e sofisticada do que a oficialmente proferida pelo julgador. Críticas destrutivas e vazias, e ainda sem a apresentação sucessiva de proposta alternativa, nenhum valor agregam ao desenvolvimento de teorias no Direito e tampouco contribuem para a efetividade do sistema jurídico.
Grosso modo, jurista brasileiro não faz isso. Por quê? Particularmente, não compreendo as suas (carências de) razões. Ao contrário: a apresentação de impugnações doutrinárias consistentes a decisões judiciais seria extremamente benéfica para a evolução teórica do Direito e sua melhor aplicação. É o que procuro fazer quando exponho meus argumentos; e o fiz, ao desmistificar a noção esdrúxula de presunção de inocência defendida no Brasil (ebook Desmistificando a presunção de inocência), e ao recomendar critérios objetivos para se tomar decisões normativamente coerentes e subjetivamente controláveis (ebook Interpretação jurídica coerente: premissas fundamentais e metodologia). O sistema jurídico brasileiro ficaria cada vez mais antifrágil, como diria Nassim Taleb. (Recomendo a leitura de Antifrágil. Ebook Kindle.)
Escrita envolvente, com demonstração de cultura jurídica e erudição, é inútil, se o autor não souber realmente, por meio dela, fazer com que o cidadão comum entenda o que ocorre no mundo jurídico e passe a acreditar no que os juristas dizem. A credibilidade do Direito agradeceria.
O professor Lenio Streck diz ainda que, para uma teoria da prova, “não se pode jogar com probabilidades, intuições, deduções e subjetivismos tipo “busco a verdade real”. No fundo, isso dá tudo no mesmo, porque há um desprezo por critérios substantivos e uma ode à ficcionalização das respostas. Na verdade, teorias como essas querem dar respostas antes das perguntas. Fazem “deduções” porque constroem, artificialmente, as premissas.”
Entendeu, prezado leitor? Confesso que não captei a mensagem passada exatamente por ele. Confusa. Mas compreendi a sua finalidade depreciativa. Vou contestá-la por partes.
Como disse antes, teorias de probabilidade não têm relações com solidez das provas. Também intuições e deduções não implicam necessariamente em abuso do poder de decidir ou em arbítrio. Daniel Kahneman demonstrou isso, por pesquisas sociais cientificamente validadas: que intuições (e deduções) podem verdadeiramente ser confiáveis, quando o ambiente for regular (sociedade brasileira) e as experiências forem aprendidas e vivenciadas, devido à conscientização formada e gravada na mente, pela repetição dos acontecimentos (tragédias naturais e crimes) e dos seus efeitos correlatos, então desencadeados como (não-)resposta contumaz ao longo da vida (danos materiais, punições, impunidades).
Quanto à menção a “subjetivismos” tipo “busco a verdade real”, o professor nada explicou. São palavras em vão. Subjetivismo por parte do juiz sempre haverá. É ele o ser humano investido no cargo que, constitucionalmente, tem o dever de analisar os dados colhidos no processo, costurá-los e produzir a melhor narrativa que justifique a decisão tomada. Se o teor da decisão é classificado por “verdade real” ou por qualquer nomenclatura do gênero, é irrelevante para a eficácia e credibilidade do Direito ou de qualquer teoria.
Bato na mesma tecla: é a incoerência da narrativa judicial (fundamentação da decisão) que deve ser desmascarada em todas as suas peculiaridades. Repito: não há esse hábito por parte dos juristas brasileiros em geral. E o jurista Lenio Streck também não o faz detalhadamente como deveria, atendo-se minuciosamente aos fatos, para fazer jus ao aguçado senso crítico que demonstra nos seus artigos e livros. Quando o faz, manifesta-se superficialmente, apenas no espectro teórico, tentando desqualificar teorias levantadas nas discussões processuais ou de mérito, para, após, censurar o resultado da decisão. Constatação esta também percebida por Cristiano Carvalho.
Inexistem indícios de que o jurista brasileiro, por costume, criará esse hábito algum dia. Expor-se a críticas para quê? Submeter a sua autoridade acadêmica consolidada ao risco de “apedrejamento” argumentativo? Desnecessário. A exigência do público (leigos, estudantes e profissionais do Direito) não o desafia em sua intelectualidade.
Lamentavelmente, aceita-se acrítica e (in)conscientemente como juridicamente “certo” tudo o que o doutrinador teoriza e expressa. Esta fragilidade vem da origem: o ensino jurídico brasileiro não busca a formação de pensadores, mas de repetidores, como o próprio Lenio Streck ressalta há anos em seus textos. Afinal, se o aluno contestar o que o professor disser em aula ou o que está nos manuais, o zero “aguarda-lo-á” como nota de prova, como diria nosso atual presidente.
Mais adiante, e com pertinência, o professor aponta como causador da insegurança e falta de previsibilidade jurídica, a ausência de critérios para a tomada de decisões. Pois, segundo o professor, “não há preocupação com um mínimo grau de objetividade e respeito à coerência e à integridade do direito (aliás, isso é obrigação legal – artigo 926 do CPC). Porque sequer se cumpre a objetividade mínima do texto como ponto de partida limitador de um processo hermenêutico. Pergunto: O que são a livre apreciação da prova e o livre convencimento se não argumentos emotivistas (ou coisa desse gênero)?”
Com o devido respeito, o professor falar em inexistência de “um mínimo grau de objetividade e respeito à coerência e à integridade do direito” e em “argumentos emotivistas” como fundamento de decisão judicial, sem, em contrapartida, esmiuçar o foco da crítica, não destrinchando as falhas argumentativas e, sobretudo, omitindo-se em propor nova solução para o caso concreto dentro do padrão que entenda ser conforme “à coerência e à integridade do direito”, equivale a eu falar para minhas filhas de 8 e 10 anos para não beberem a água do filtro por estar contaminada, sem explicar a elas o que acontece se bebermos água contaminada e – pior ainda – sem mostrar-lhes onde deverão pegar água para matar a sede.
Ou seja: decisão judicial péssima? Demonstre pontualmente as incongruências, com especificidade. Água contaminada? Diga às crianças por que está, e os possíveis efeitos de consumi-la. Não gostou da decisão judicial? Proponha substituta melhor. Não podem beber “aquela” água, diga-lhes qual água pode ser ingerida para se hidratar.
Em suma, falar genericamente que não há preocupação com um “grau mínimo de objetividade e respeito à coerência e à integridade do direito”, aparenta ser “jogada de marketing”. É evidente que a interpretação do direito, no Brasil, é extremamente subjetiva e aleatória. Igualmente notório é o descrédito popular no direito brasileiro. Então, ressaltar que falta grau mínimo de objetividade e coerência na interpretação jurídica pode significar “cair nas graças” ou “tornar-se porta-voz” de todos que assim pensem (a maioria da população e dos que estudam “direito”).
Contudo, a maldade implícita na declaração do professor está em tentar colocar em similar descrédito a decisão judicial com a qual discordou, para que sirva de exemplo concreto e justificativo da pouca objetividade ou da incoerência jurídica, não obstante a decisão condenatória do Lula ter sido bastante elogiada por várias outras pessoas que a leram.
Destaco, por fim, o desejo do professor: “Quero no direito a preservação de garantias. Quem tem de provar robustamente a culpa do réu é o Estado. Isso não pode vir de presunções. E nem de probabilidades.”
Faço coro com ele: também quero a preservação de garantias. Quero ter a garantia de ir às ruas e não ser assaltado; de que os impostos que pago serão destinados à melhoria dos serviços públicos essenciais. Também gostaria de ter a garantia de não ter o desprazer de assistir políticos picaretas se candidatando a mandato eletivo, com o respaldo de uma “presunção de inocência” às avessas e atentatória ao discernimento humano. Gostaria, além disso, de ter a garantia de não ter o desgosto de presenciar juristas condicionando a boa fundamentação da sentença condenatória por corrupção passiva ou lavagem de dinheiro, à produção de provas formalmente impossíveis para a caracterização destes crimes. Gostaria ainda de ter a garantia de ver assegurado pelo Judiciário e pela doutrina o respeito à minha inteligência e à dos demais cidadãos que possuem “um mínimo grau de objetividade” em instrução e conhecimento sobre os acontecimentos cotidianos, mas que, por inevitável ignorância, são obrigados a engolir os descalabros jurídicos propagados por “especialistas” nas diversas mídias a que têm acesso.
Concordo plenamente com o professor: “Quem tem de provar robustamente a culpa do réu é o Estado.” Contudo, faltou o complemento: o Estado o faz: investiga (polícia), processa (ministério público) e condena (judiciário). Enquanto quaisquer procedimentos investigativos, processuais ou decisões condenatórias não sejam invalidados, temos que presumir a robustez na comprovação da culpa do réu. Ou, então, consideremos a presunção de insanidade dos agentes públicos do Estado, que perseguiram um “inocente” e o incriminaram arbitrariamente. Sinceramente, acredito na primeira hipótese de presunção. E você?
Post scriptum (23/07/2017). Ao ler o texto acima, um amigo fez um comentário bastante interessante, o qual complementa o que disse. Por fidelidade às suas palavras, transcrevo-as:
“Sobre o assunto tribunal e probabilidade, há fatos curiosos que ilustram alguns erros. Por isso, a utilização da probabilidade pode fazer parte, mas a decisão final deve sempre ser subjetiva por definição. Em 18/06/64, ao redor das 11:30h, Sra. Juanita Brooks voltava para casa por uma travessa na região de San Pedro, Los Angeles. Foi empurrada para o chão e teve a bolsa roubada. Enxergou uma mulher de cerca de 70kg, com cabelo loiro.
John Bass, que vivia numa rua ao fim da travessa, viu uma mulher fugir correndo e entrar num carro amarelo, entre médio e grande, com um motorista negro de barba e bigode. Polícia de Los Angeles: prendeu após alguns dias Malcolm Ricardo Collins e sua mulher Janet, por possuírem um carro amarelo e ambos terem o perfil descrito pela vítima. Para sustentar a prisão, a acusação apresentou à corte um professor assistente de matemática de uma faculdade estadual, com alguns dados de probabilidade: automóvel amarelo: 1/10; homem com bigode: 1/4; homem negro com barba: 1/10; garota com rabo de cavalo: 1/10; garota loira: 1/3; casal inter-racial: 1/1000; total coincidência: 1/12.000.000. Resultado: juri condena casal.
Erros matemáticos no julgamento: probabilidades devem ser independentes para se permitir multiplicação, isto é, na população, não poderíamos multiplicar, pois a maioria das pessoas que possuem barba, também possuem bigode. E o mais famoso: O.J. Simpson. Acusado de matar sua ex-mulher e o namorado; cobertura intensa da mídia entre 1994 e 1995; acusação decide concentrar-se no fato dele ter espancado a ex-mulher.
Defesa rebate com os números: 4 milhões de mulheres foram assassinadas por seu companheiro; logo, 1/2500 é a chance de alguém que bate na mulher realmente matá-la. Acusação não soube rebater esses dados, pois desconhecia probabilidade e lei de Bayes; 1/2500 é a probabilidade de alguém que bate na mulher, um dia, matá-la.
Verdade? Sim. Relevante [juridicamente]? Não.” (Conferir Leonard Mlodinow. O andar do bêbado. Como o acaso determina nossas vidas. Ebook Kindle. Também disponível gratuito para download em pdf.)
Ou seja, no caso da condenação do ex-presidente, por mais que, pela lei da probabilidade, a análise objetiva e conjunta dos fatos provados levem ao reconhecimento de sua culpa pelos crimes de corrupção passiva e lavagem de dinheiro, não é isto o que importa, mas, tão somente, o que está na cabeça do juiz Sérgio Moro, e foi expressado na narrativa que construiu para justificar a sentença condenatória. Quando os críticos focalizam na lei de probabilidades, tentam, na verdade, desqualificar a fundamentação da decisão, sem, de fato, demonstrarem, por contra-argumentos específicos, eventuais vícios de coerência que caracterizem o arbítrio cometido pelo magistrado.