Argumento de autoridade: “não o banalizem, ‘autoridades’!”

Renato R Gomes Administrador

Volta e meia tenho desprestigiado, em artigos escritos, o chamado argumento de autoridade. Posse acabar sendo injusto. Normalmente,

tento evitar generalizações depreciativas, para não me equivocar, quando critico alguma decisão judicial ou tese jurídica que têm como premissas tão somente esta espécie de argumento. Ou, melhor, têm como premissa não um argumento de autoridade legítimo, mas, sim, uma falácia isolada e repetida irracionalmente por seguidores. Falácia que, além de não possuir respaldo objetivo no sistema jurídico visto em sua unidade, tampouco representa verdadeiro argumento de autoridade.

Um argumento de autoridade legítimo deve ser levado em consideração? Naturalmente que sim. Apesar de, por si só, ser insuficiente para fundamentar uma decisão judicial se não houver elementos no Direito que objetivamente a sustentem, a opinião abalizada de especialistas no assunto reforça a credibilidade do resultado da interpretação jurídica feita pelo juiz ou jurista, quando presente base jurídica para justificá-la.

Como identificarmos um legítimo argumento de autoridade? Existem, pelo menos, quatro regrinhas básicas que necessariamente precisam ser atendidas, para que o argumento possa ser reconhecido efetivamente como tal e seja respeitado: i) argumento deve ser apresentado por especialista no tema; ii) deve haver um consenso em prol do argumento, não havendo discordância significativa entre especialistas; iii) a fundamentação do suposto argumento de autoridade deve ser capaz de refutar objeções a ele opostas por vozes discordantes. Ser capaz de rebater ou desconstruir não quaisquer objeções ou contra-argumentos levantados, mas, detidamente, aqueles que consigam demonstrar, com precisa objetividade e apoio do sistema jurídico e de sua linguagem, a incoerência do argumento vindo da autoridade, ou evidenciar a sua fragilidade jurídica, quando comparado à outra possibilidade interpretativa. E iv) o argumento deve ser defendido com imparcialidade e honestidade intelectual. Ou seja, não deve haver interesse direto do especialista na efetivação da tese que sustenta, nem apego a ela, ou interesse, no todo, do grupo ou da classe a que pertença. E, muito menos, deve o argumento prestar-se a servir como espécie de moldura da realidade, seletivamente manipulada e escolhida pelo livre arbítrio da “autoridade”.

Especialmente em relação ao estudo e aplicação do Direito, observadas estas premissas, o argumento de autoridade mostra-se extremamente relevante para fomentar o debate jurídico sério e fazer com que o sistema jurídico seja constantemente aperfeiçoado, com ganhos em eficácia e credibilidade. Creio que estamos muito longe disso aqui no Brasil, país onde reina a domesticação jurídica, da qual poucos escapam: ensino jurídico que forma repetidores acríticos de opiniões alheias; juristas renomados, mas dominados pelo próprio conhecimento e “cegos” ao novo; cúpula do judiciário, com meia-dúzia de infiltrados influentes e com poder decisório, fazendo de tudo para sorrateiramente dificultar ou inviabilizar investigações que vêm, aos trancos e barrancos, contribuindo reflexamente para a transformação da nossa Cleptocracia numa República de fato.

Para exemplificar o (mau) uso do argumento de autoridade, escolhi novamente o tema do momento: presunção de “inocência”. (Tema aprofundado em meu e-book Desmistificando a presunção de inocência)

Uma autoridade do judiciário afirmou: “Nossa Constituição não é uma mera folha de papel, que pode ser rasgada sempre que contrarie as forças políticas do momento”. E completou: “Não se deve fazer política criminal em face da Constituição, mas sim com amparo nela.”

Essa opinião foi manifestada para conceder habeas corpus a um condenado em segunda instância judicial, por crime de corrupção passiva, para impedir que fosse preso e, assim, pudesse aguardar o julgamento de recursos ao STJ e STF em liberdade.

De acordo com a autoridade judicial, o art.5.º,LVII, da Constituição “proíbe expressamente” a execução da pena antes da decisão condenatória definitiva (“ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”).

Posta a situação, sintetizo o “argumento” que considero de autoridade no seguinte: a Constituição proíbe o início da execução da pena sem que haja trânsito em julgado da decisão condenatória, porque, segundo o seu texto, sempre inexistirá culpa em momento anterior.

Mas antes de analisá-lo à luz das quatro regrinhas, duas observações são necessárias. Primeira: classifico este “argumento” como de autoridade, porque ele advém de interpretação voluntariosa da redação do art.5.º,LVII, da CF. Ou seja, a Constituição, em suas palavras, não proíbe expressamente a prisão após condenação em segunda instância. É mera proposição criada pela vontade da autoridade com poder de decisão. Basta saber ler para se chegar a esta conclusão. Segunda: coloquei a palavra “argumento” entre aspas, porque, na verdade, não é argumento válido, mas, sim, uma falácia argumentativa, a qual pode ser definida como “argumento inválido que intuitivamente parece válido”. (Recomendo a leitura do excelente professor português Desidério Murcho, O lugar da lógica na filosofia, Ebook kindle).

Às regrinhas. Regrinha um: argumento deve ser apresentado por especialista no assunto. Quem afirmou que a Constituição proíbe expressamente a execução da pena antes da condenação transitada em julgado? O ministro do STF, Ricardo Lewandowski. Ele é especialista em interpretação constitucional? Presumo que não; os fatos falam por si. Este ministro, há um ano, fez o desfavor de “rasgar” a Constituição. Contrariou exatamente o que agora prega retoricamente (o respeito à Constituição), por lhe ser conveniente. Especificamente, o ministro passou arbitrariamente um liquid paper no art.52, parágrafo único, da CF, quando presidia a sessão de votação do impeachment da ex-Presidente Dilma Roussef, no Senado Federal. Tanto que o ministro Gilmar Mendes qualificou a sua decisão como vergonhosa! A “autoridade” judicial Ricardo Lewandowski, na ocasião, interpretou politicamente a expressão constitucional “perda do cargo, com inabilitação, por oito anos, para o exercício de função pública”, como se a inabilitação por oito anos, para exercer função pública, não fosse consequência direta da perda do cargo de Presidente da República, pela aprovação do impedimento.

Apesar de os fatos demonstrarem que Ricardo Lewandowski não é autoridade em interpretação constitucional, podemos questionar: há teoricamente autoridades judiciais e doutrinárias que defendem o mesmo argumento da proibição constitucional da prisão antes do término do processo penal? Sim; em especial, juristas constitucionalistas apegados à ideologia de direitos humanos às avessas, ou criminalistas aferrados a interpretações convenientes do direito penal, que atendam a crenças e interesses pessoais e profissionais.

Digo “direitos humanos às avessas”, porque (quase) nenhum deles, juristas ou criminalistas, enfatiza em seus escritos a necessidade de se respeitar os direitos humanos das pessoas que se comportam no campo da licitude, que são as verdadeiras vítimas das inseguranças pública e jurídica, constantemente agravadas pela ineficácia do Direito e aleatoriedade com que decisões são tomadas. O mundo dos fatos é recortado seletiva e arbitrariamente, segundo o molde jurídico da tese preferida. Enfocam, com primazia, e quase que exclusivamente, o dever de respeitar os direitos humanos de grupos minoritários; em especial, de indivíduos que atuam na ilicitude ou são tidos por “vitimados” da sociedade, como os presidiários.

Particularmente, nada contra a proteção de direitos humanos de quem quer que seja. Até porque a Constituição veda qualquer discriminação arbitrária (3.º,IV). O problema é a sobrevalorização de direitos ou garantias de indivíduos que necessária e juridicamente devem ser discriminados, tais como os criminosos. Sim, porque discriminar criminosos não implica em discriminação arbitrária ou injustificada. Pelo contrário, é imposição jurídica implicitamente dirigida aos agentes do Estado (policial, promotor e juiz), que devem zelar pela proteção das ordens pública e jurídica, afetadas exatamente pelos comportamentos delituosos e notoriamente conhecidos como proibidos. Assunto polêmico; sigo adiante.

De fato, arrisco-me a dizer, existem poucas autoridades em interpretação constitucional na doutrina nacional (professor Humberto Ávila, por exemplo). A balbúrdia interpretativa em relação ao que se afirma que a Constituição quer dizer é bastante significativa. Autoridade, hoje, no Brasil, acredito que seja contingencial e identificável posteriormente à aprovação do argumento como efetivamente de autoridade. A autoridade surge à medida que seu argumento passar pelo filtro das quatro regrinhas. Ou, melhor dizendo, das regrinhas três e quatro. Isto é, o reconhecimento da autoridade está atrelado ao reconhecimento do argumento como sendo legitimamente de autoridade.

Penso que ser estudioso de teoria e reconhecido academicamente no Brasil, por si só, não o transforma automaticamente em autoridade no assunto interpretação jurídica, se o argumento por ele defendido não passa pelo crivo das regrinhas três e quatro.

Regrinha dois: deve haver consenso em prol do argumento e inexistir divergência significativa. Há consenso em torno do alegado argumento de que a Constituição veda a execução da pena após a condenação em segundo grau? Não; não há consenso. O próprio Supremo Tribunal Federal, pelo voto de seis dos onze ministros, em sua recente mudança de entendimento, ao ter autorizado o cumprimento da pena depois da ratificação da sentença condenatória em segunda instância, reconheceu que inexiste proibição constitucional expressa que impeça o direito penal de fazer valer a sua força normativa para inibir a prática de ilícitos.

Regrinha três: a fundamentação do suposto argumento de autoridade deve ser capaz de refutar objeções a ele opostas por vozes discordantes. Não é o caso: a afirmativa de que a Constituição proíbe expressamente a prisão antes do trânsito em julgado é puramente ideológica; sob o aspecto jurídico, extremamente frágil (para não dizer trágica).

Colocando o argumento em sua forma lógica: i) Só existe culpa do indivíduo se a sua condenação penal houver transitado em julgado (CF,5.º,LVII). ii) Se não há decisão condenatória ainda com transitado em julgado, iii) então, todos, sem exceção – sejam presos em flagrante delito, denunciados pelo Ministério Público por crimes hediondos com justa causa, condenados pelo Tribunal do Júri por homicídio triplamente qualificado, condenados pelos juízes Sérgio Moro e Marcelo Bretas, condenados por Tribunal de Justiça estadual, Tribunal Regional Federal ou Superior Tribunal de Justiça etc -, são presumidamente “inocentes”.

Este argumento é falso. A falsidade é fácil e objetivamente demonstrável. Inicialmente, a Constituição não condiciona o reconhecimento de qualquer grau de culpa ao trânsito em julgado. Condiciona, sim, o reconhecimento definitivo da culpa, não mais contestável, ao trânsito em julgado.

É falso também porque o sistema jurídico, semanticamente, reconhece a existência da graduabilidade da culpa. Por exemplo, quando exige justa causa para que o promotor de justiça denuncie o acusado (CPP,41; 395,III); quando determina ao juiz que considere o grau de culpabilidade do réu, no momento de fixar a pena de prisão na sentença (CP,59); ou, implicitamente, quando possibilita a prisão em flagrante delito (CPP,302;303). Possibilita a prisão, porque presume a culpa de quem é flagrado na criminalidade. Constitui verdadeira aberração jurídica, atentatória à verdade conceitual ou semântica da palavra “inocente”, qualificarmos um sujeito preso em flagrante como sendo presumidamente inocente.

Regrinha quatro: o argumento deve ser defendido com imparcialidade, honestidade intelectual, com desapego à ideologia ou desvinculado dos próprios interesses ou do interesse do grupo a que pertence a autoridade. Não é a hipótese. O argumento é sustentado com parcialidade: i) despreza-se arbitrária e injustificadamente a interpretação sistemática e, consequentemente, viola-se o Direito em sua unidade; ii) há interesse direto na sua confirmação, por parte dos especialistas que o proclamam.

Interesse por motivo ideológico ou de apego ao próprio conhecimento, porque o argumento da presunção de “inocência” se adequa ao conceito dogmático de Direito que o especialista acredita ser o ideal ou tem como crença imutável; ou interesse por motivo profissional, porque o “argumento”, aqui no Brasil pelo menos, mostra-se processual e financeiramente vantajoso para o cliente e o profissional, respectivamente.  A vigorar o “argumento” da proibição de prisão antes de condenação definitiva, o código de processo pode se transformar, nas mãos de autoridade habilidosa e interessada na protelação da decisão, numa ferramenta de procrastinação do encerramento da discussão judicial. Se há brechas legais, natural que a suposta autoridade as explore a seu favor e de seu cliente, conforme as regras do jogo. Se a autoridade que defende o “argumento” é um excelente e famoso advogado criminalista, feliz ficará o seu cliente. Se for um jurista de renome e parecerista, da mesma felicidade compartilhará quem encomendou seu parecer.

Contudo, nenhum jogo no Direito pode perdurar indefinidamente, como já frisado, com autoridade, diversas vezes pelo professor e atual Ministro do STF, Luís Roberto Barroso. Ainda mais se tiver como fundamento única e exclusivamente um falso argumento de autoridade, como o é a demonstrada falácia da presunção de inocência.

Prestigiemos, sim, os verdadeiros argumentos de autoridade. Mas somente após filtrados pelas quatro regrinhas. Desconfiarmos sempre do que a autoridade diz em relação ao Direito, portanto, é pressuposto indispensável para desenvolvermos senso crítico e trabalharmos ideias próprias, com autonomia e honestidade de propósito.

“O correto ensino da lógica pode ser um antídoto para este estado de coisas. Pois é aí que se pode sublinhar a importância da argumentação no difícil e paciente processo de tentar descobrir a verdade das coisas; é aí que se pode sensibilizar o estudante para a importância de saber pensar, dando-lhe instrumentos lógicos adequados. O resultado que se pode almejar são cidadãos mais criativos e críticos, que trarão uma mais-valia fundamental para um país que tanto carece de pessoas com capacidade para resolver os nossos problemas, produzir riqueza e bem-estar, e estimular com o seu exemplo os outros cidadãos a fazer o mesmo. Sem uma cultura criativa e crítica, informada e rigorosa, a discussão pública é sempre deficiente, e as decisões são sistematicamente formadas pelos interesses que têm mais força ou que gritam mais alto, e não um resultado de reflexão criativa e rigorosa, informada e inovadora.” (Desidério Murcho. O lugar da lógica na filosofia. Ebook Kindle. Posições 2230-2236)