No dia 10/05/2017, dia do interrogatório do Lula no processo criminal a que responde, uma cena ficou registrada em minha memória, e as imagens ainda permanecem brilhantes:
o momento em que o professor, advogado e jurista, René Ariel Dotti, literalmente, pede a palavra ao juiz Sérgio Moro para, em seguida, advertir, de modo enfático e contundente, o advogado do réu, Cristiano Zanin, por sua manifesta falta de educação e arrogância como profissional em atuação.
Porque, para o respeitado professor, o advogado, para se fazer respeitar, deve pedir a palavra ao juiz, e, não, falar a hora que quiser, o que quiser, interrompendo e criticando a condução da audiência pelo magistrado, em postura de confronto. Eis aí o ponto de partida do que vou falar.
A Constituição assegura expressamente o direito à ampla defesa (5.º,LV). O que vem me intrigando é o seguinte. Imaginemos que a ampla defesa seja o centro de uma circunferência. Suponhamos que o raio da circunferência indique o somatório de todas as condutas possíveis e inimagináveis juridicamente abarcadas pelo exercício do direito à ampla defesa. Ou seja, cada conduta representativa da ampla defesa equivaleria a um ponto do seu raio.
Consideremos que, quanto mais a conduta praticada para assegurar a ampla defesa do réu se afaste do centro da circunferência, mais frágil vá se tornando a moralidade a ela inerente. De modo que, ao identificarmos a sua posição exatamente na linha do perímetro, a conduta exercida em ampla defesa possa não apenas ser classificada como imoral pelo senso comum, mas, inclusive, afetar a credibilidade do sistema jurídico.
Essas condutas distanciadas do núcleo da circunferência metafórica da ampla defesa e que a delimitam encontram-se, então, numa espécie de zona cinzenta ou de desconforto, permitindo ao cidadão comum, leigo em Direito, questionar: vale tudo para exercer a ampla defesa? i) O advogado pode propositalmente afrontar o juiz, visando à criação de motivo para a arguição posterior de sua suspeição, sob o argumento de parcialidade do julgador? ii) O advogado pode arrolar 87 testemunhas de defesa, ou 1001, se achar mais interessante para procrastinar a provável sentença penal condenatória? iii) O direito constitucional de permanecer calado (5.º,LXIII), como parte integrante da estratégia de defesa, pode ser interpretado extensivamente para acobertar o direito imoral de mentir para induzir o julgador a erro?
Com o devido respeito, a ampla defesa irrestrita, como tem sido tolerada juridicamente pelos tribunais brasileiros, não passa de um verdadeiro deboche, um escárnio, uma agressão à inteligência das pessoas, do homem-médio e sem dívidas para com a justiça criminal. Porque, na realidade, a ampla defesa adquiriu uma natureza quase que absoluta, não sendo de praxe questionar-se a validade jurídica de conduta, ou imediatamente rejeitar-se petição protocolada pela defesa do réu, que tenha como fundamento geral e abstrato o princípio da ampla defesa. Na prática, admite-se a petição apresentada no prazo legal e indefere-se ou não o pedido.
Vou me ater às três indagações que levantei, por considerá-las juridicamente excluídas da área da circunferência representativa do exercício constitucional do direito à ampla defesa.
Primeira delas: a situação de enfrentamento criada propositalmente pelo advogado mal-educado pode constituir motivação para arguir judicialmente a suspeição do magistrado? Pois, em tese, se o juiz reagiu à agressão verbal, intuitivamente, podemos presumir que passou a ter interesse em condenar o réu, por ter ficado emocionalmente irritado, o que afetaria a sua imparcialidade. Respondo: não, não pode o advogado dar ensejo a situações impertinentes à apuração dos fatos, com a finalidade exclusiva de interpor recursos puramente protelatórios, de forma a prolongar o processo judicial.
O código de processo civil é expresso ao classificar como litigante de má-fé quem “opuser resistência injustificada ao andamento do processo” (80,IV), “proceder de modo temerário em qualquer incidente ou ato do processo” (V) ou “interpuser recurso com intuito manifestamente protelatório” (VII). Disposições plenamente extensíveis ao processo criminal, não apenas pela previsão legal no código de processo penal (CPP,3.º), mas, principalmente, porque a palavra “processo” é gênero, do qual são espécies o civil e o penal.
Mesmo quando se trata de apuração de crime, quem de fato almeja comprovar sua inocência, não tem o menor interesse em postergar o processo criminal indefinidamente no tempo. Quanto mais duradouro o trâmite processual, por mais tempo o réu permanecerá injustamente como suspeito pela prática de crime que não tenha cometido, ou que o fizera justificadamente. Não por acaso a celeridade processual está prevista na Constituição, sendo garantida a todos. Mas, por motivos óbvios, só é pretendida por aqueles aos quais o Direito dá efetivamente razão (5.º,LXXVIII).
O professor René Ariel Dotti foi contundente ao advertir o advogado de poucos modos: “Isso não se faz em uma audiência. Proteste contra o juiz, recorra contra o juiz, mas não enfrente o juiz pessoalmente na audiência, para o público que está presente.”
A segunda hipótese: posso arrolar mil e uma testemunhas de defesa, sendo o juiz obrigado juridicamente a aceitá-las, sob pena de anulação do ato decisório, fundada no cerceamento de defesa? No Brasil, país “sério”, doutrinariamente “invejável”, e portador de uma “suprema” justiça, por mais que o propósito procrastinatório da defesa esteja evidente, recomendável que o juiz submeta-se à oitiva dos depoimentos, para não correr o risco de um “superior” ou mesmo um “supremo” ministro anular a decisão judicial com uma “canetada”, sob o argumento de ter havido violação do direito à ampla defesa.
Na teoria, é possível a tomada de muitos depoimentos, desde que demonstrada a relação de pertinência entre o depoimento de cada testemunha indicada e a questão a ser apurada, bem como a ausência de redundância entre os testemunhos que serão colhidos, por serem destinados à solução de pontos controvertidos diversos (CPP,401). Afinal de contas, podemos ter “um milhão de amigos” generosos e dispostos a nos defender espontaneamente de acusações de terceiros ou do Ministério Público, que cismam em nos perseguir sem provas, não é verdade?
Contudo, em um país como o Brasil, em que o resultado da aplicação judicial do Direito é uma incógnita jurídica, porque cada juiz interpreta e decide “segundo o seu entendimento”, tudo, e absolutamente tudo, é juridicamente possível de acontecer, em se tratando de ampla defesa e presunção de inocência.
Por isso, creio que o juiz Sérgio Moro, apesar de normativamente embasado, arriscou-se a ver decisão sua anulada, ao indeferir o pedido da defesa de Lula para ouvir outras mais testemunhas: “Este juízo já ouviu muitos depoimentos sobre o apartamento triplex e sobre a reforma dele, não sendo necessários novos a esse respeito. O que se faz necessário, sim, é valorar oportunamente os depoimentos já tomados, juntamente com as demais provas.” Complementou: “Observo ainda que a ampla defesa, direito fundamental, não significa um direito amplo e irrestrito à produção de qualquer prova, mesmo as impossíveis, as custosas e as protelatórias.” O tempo dirá.
O terceiro questionamento: direito a permanecer calado inclui o direito a falar mentiras? Mentiras contadas inconscientemente, pelo fato de o interrogado estar convencido da sua “verdade”, sim: são juridicamente aceitáveis, porque a sua fala é mera narrativa construída, segundo a sua interpretação subjetiva dos acontecimentos.
Agora, mentir propositalmente, buscando confundir as investigações ou induzir o juiz a erro, é juridicamente inaceitável. Tanto o é, que o código penal, no artigo 59, autoriza o juiz a considerar a personalidade do réu no momento em que for calcular e individualizar a pena a ser aplicada a ele. O fato de o acusado não prestar juramento e poder alegar o que for necessário para beneficiar a sua defesa (CPP,187,§2.º,VIII), não implica na autorização normativa implícita para tentar manipular o juiz com alegações falsas ou tripudiar da ineficiência do Poder Judiciário, agravando o descrédito que já paira sobre sistema jurídico penal.
A mentira intencional, além de dificultar a apuração dos fatos e a aplicação adequada do Direito, corroendo a sua eficácia, a credibilidade e contrariando o próprio caráter inibitório do Direito, estimula a irresponsabilidade da pessoa pelos ilícitos praticados, por ser capaz de gerar a crença imoral de que não será punido (afinal, o crime não foi perfeito?). “Não sabia de nada, não vi nada, não escutei nada, não fiz nada, e não autorizei ninguém a falar ou praticar ilicitudes em meu nome!” No Brasil, acho que já escutei isso antes. E você, leitor?
Moralmente, a mentira maliciosa é ainda pior, quando contada por indivíduos poderosos, que tenham sido processados criminalmente por participação em organização criminosa, corrupção, lavagem de dinheiro, peculato, dentre outros crimes lesivos ao patrimônio público.
Pior, por, pelo menos, duas razões. Primeiro, porque, reflexamente, a população mais carente é quem mais absorve o estrago feito, pela falta que o dinheiro público surrupiado faz para realização de investimentos nos serviços essenciais como saúde e educação.
Depois, porque a mentira não é afirmada apenas pelo criminoso, mas, lamentavelmente, também é ratificada pelos “super-advogados” criminalistas. Soa paradoxal que profissionais do Direito, zelosos pelo seu cumprimento, tentem distorcê-lo, aproveitando-se conscientemente de narrativas sabidamente mentirosas, na tentativa amoral de buscar a absolvição a qualquer custo de seus clientes, em troca de “credibilidade” e muito dinheiro. Moral e honestidade intelectual? Não “enchem a barriga”.
Poderíamos ainda especular: a mentira intencional, para autopreteger-se, não seria direito natural do ser humano? Não, em hipótese alguma. A suposta autoproteção se daria em prejuízo da sociedade: infração cometida e impune; segurança pública fragilizada; desconfiança no Poder Judiciário e no Direito fortalecida. Incentivo, às avessas, do exercício arbitrário das próprias razões (CP,345), por parte das pessoas que se sintam agredidas e estão desacreditadas no poder do Estado para restabelecer ou reparar o seu direito violado (“então, resolvo eu”).
Não tenho dúvidas: a tolerância jurídica com mentiras dolosamente contadas aos órgãos de investigação ou ao juiz não tem respaldo constitucional. É interpretação jurídica que se faz, pautada na retórica da ampla defesa ilimitada e no pluralismo moral deturpado. É instigação a condutas antijurídicas e a sinalização da indiferença estatal com a sua autoridade institucional. Em suma, um deboche, um desrespeito com os cidadãos autorresponsáveis e que agem dentro da licitude.
O professor Tony Aires, psicanalista, é enfático:
“A mentira é negativa porque revela: fraqueza, incapacidade, covardia perante os próprios atos, imaturidade, desconsideração para com as demais pessoas, narcisismo, mas principalmente… mau-caratismo.
É por isso que, via de regra, todo mentiroso é um mau caráter. Poderia, para ilustrar este texto, utilizar-me do tão conhecido exemplo da mentira dos políticos. Mas essa já está por demais conhecida e até banalizada.”
Não podemos jamais nos esquecer: estamos no Brasil, o país sui generis, onde a corrupção sistêmica está notoriamente infiltrada nas instituições públicas e, paradoxalmente, é praticada por cidadãos ou pessoas “presumidamente inocentes” ad eternum e protegidos pela suprema interpretação retórica do Direito do supremo ministro, com a conivência da “inteligência” de afamados juristas e advogados de “notável” saber.
Como desfecho, não posso me furtar a responder: que comportamentos extrapolam o exercício constitucional da ampla defesa, rompendo a linha limítrofe de sua circunferência?
Presumo inicialmente que toda conduta textualizada em lei como parte integrante do núcleo da ampla defesa, como o oferecimento de contestações, réplicas ou recursos, tende a ser juridicamente válida. No extremo oposto, qualquer comportamento não contemplado em texto legal e que afete ilegalmente direito de terceiro ou ameace a eficácia inibitória, repressiva ou pacificadora, inerente à própria existência do Direito, caracteriza abuso de direito à ampla defesa, sendo, portanto, antijurídico.
Como saberemos identificar ações deste tipo? O professor Ingo Sarlet constatou ser difícil definirmos o que seja dignidade humana, mas disse ser fácil identificarmos nas situações da vida quando ela está sendo violada (A Eficácia dos Direitos Fundamentais. 6.ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006. p.117).
Adapto a constatação do professor, por ser aplicável à análise da validade da conduta supostamente direcionada à ampla defesa: complicado estabelecermos de antemão limites ao exercício deste direito. Por outro lado, muito simples percebermos intuitivamente quando a ampla defesa é abusiva e fere o senso mínimo comum de valores morais, acobertados pelo pluralismo jurídico e pelo Direito em sua essência.