Não há dúvidas de que é humanamente impossível a regulamentação em lei de
todas as situações da vida capazes de gerar conflitos. O futuro é imprevisível. O que o legislador faz é firmar regras de comportamento que permitam a convivência harmônica na sociedade.
A criação de regras de conduta normalmente leva em conta as experiências do passado, aspectos culturais e valores morais predominantes no país, o contexto social, político, econômico, tecnológico e científico vigente no momento. Perfeito. Ou quase. Por quê? Porque as regras de conduta são identificadas somente após a interpretação dos textos normativos editados pelo legislador. Na realidade, quem cria as regras de comportamento acaba sendo o intérprete, após a interpretação que faz da redação ou das expressões linguísticas do texto legislado. Por mais inequívoco que seja o sentido das palavras postas na lei, quando se trata de interpretação, o risco de a interpretação jurídica produzir teoria ou decisão normativamente incoerente está sempre latente.
Não é incomum que a solução jurídica proposta seja tendenciosa ou parcial, traduzindo implícita, mas propositalmente, a posição ideológica e moral do intérprete intelectualmente desonesto ou ignorante, em prejuízo da linguagem, da sistematicidade, da coerência, da unidade do Direito, além, obviamente, de denotar o desrespeito ao Poder Legislativo. Eis aqui o motivo para rejeitarmos o argumento da existência de lacuna valorativa ou axiológica: sua identificação depende exclusivamente de opção moral ou ideológica do intérprete.
Há lacuna valorativa quando o texto da lei regulamenta expressamente a questão jurídica, mas o intérprete, por considerar que a regulamentação normativa é “injusta”, decide ampliar, reduzir ou mesmo contrariar as possibilidades de sentido das palavras ou expressões utilizadas pelo legislador, estendendo ou restringindo o campo de aplicação da norma para situações não-previstas na redação legal. Pouco importa a intenção do legislador manifestada pela linguagem positivada.
Exemplos. Outra vez a questão jurídica envolvendo o conceito de entidade familiar. O STF considerou “injusto” o legislador constitucional não ter considerado as relações homoafetivas como espécie de entidade familiar (226,§3.º), pois, no seu entender, viola a igualdade de tratamento. Para a Corte, não atribuir a classificação de entidade familiar a relacionamentos homossexuais equivale a discriminar arbitrariamente. Nota-se, claramente, que o argumento da discriminação arbitrária é subjetivo e ideológico; não se sustenta juridicamente, porque não há coerência normativa nesta interpretação. Se o texto constitucional é expresso ao vedar discriminações infundadas (art.3.º,IV; 7.º,XXX,XXXI,XXXII, por exemplo), é sistematicamente ilógico entender que a definição de “entidade familiar” foi discriminatória e ofensiva àqueles que não se identificam com a heterossexualidade.
O juridicamente coerente seria compreendermos que o conceito de “família” fora estabelecido, em respeito ao valor moral, social e legitimamente predominante, devendo, então, ser acatado ou, ao menos, tolerado, sem a agressão rebelde da teoria intolerante do “politicamente correto”, que vem sendo encampada pelo Poder Judiciário e, especificamente, infiltrando-se no STF. Afinal, o pluralismo é fundamento da República Federativa do Brasil (1.º,V). Ou seja, inexistindo ofensas ou discriminações inequívocas, o grupo minoritário e portador de valor moral divergente obrigatoriamente deve tolerar a escolha do legislador. Da mesma forma como o senso moral minoritário deve ser respeitado pela maioria discordante.
O caso da interrupção de gravidez, fora das hipóteses de risco de morte para a gestante e de gestação derivada de estupro. O STF também considerou “injusto” para com as mulheres grávidas de fetos anencéfalos, que a realização do aborto seja classificada como crime. Analogamente, entendeu que a “injustiça” também ocorre quando mulheres são proibidas de praticar o aborto até o terceiro mês de gestação. Novamente, percebe-se o viés nitidamente ideológico e o juízo de valor moral sobressaindo-se na interpretação jurídica, em detrimento da linguagem expressa no texto da lei penal. (análise aprofundada do caso no ebook STF e interrupção de gravidez: o que esperarmos; download disponível)
Não defendo que seja juridicamente impossível, pela via interpretativa, chegarmos a uma decisão fundamentada em argumentação coerente e essencialmente objetiva, que permita validamente a interrupção da gravidez em casos excepcionais. A minha crítica é em relação ao uso de argumentos preponderantemente morais e ideológicos, criadores de lacunas na lei, na verdade, inexistentes (lacunas valorativas), para justificar uma interpretação construtiva de direitos, a bel-prazer, pelo jurista, na teoria, ou pelo juiz, na prática. A segurança jurídica agradece de antemão.
Para não passar em branco: o que penso da intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro? Muito já foi dito, tanto por especialistas, quanto por políticos e cidadãos. Desconsiderando os fundamentos políticos reais e os interesses escusos por detrás, particularmente, gostei. Pior do que estava, acho que até com esforço do governo carioca para piorar ficaria difícil! As forças armadas darão conta do caos? Torço a favor, mas desacreditado num resultado geral que resgate a confiança na segurança que desejamos como moradores e, principalmente, contribuintes achacados de impostos e que nada recebe do Estado, como contraprestação em serviços decentes. O tempo é o senhor da razão.
Aproveitando o gancho do que escrevi sobre lacuna valorativa, uma questão especificamente está em aberto, pouco se falando. O texto constitucional, no art.60,§1.º, diz o seguinte: “A Constituição não poderá ser emendada na vigência de intervenção federal (…).” Ora, como é notório o interesse no Governo Federal na aprovação da reforma da previdência em andamento no Congresso Nacional, a intervenção tornou-se óbice jurídico para a discussão e votação da matéria? Mantendo minha coerência argumentativa, afirmo categoricamente: não; não impede. O texto fala em proibição de “ser emendada”. E “emenda” apenas ocorre após a promulgação da PEC aprovada em votação, nos moldes previstos (60,§2.º). Aprovada, mas sem promulgação (§3.º), jamais revogará a redação anterior. Simples assim. Para que “reinventar a roda”?
“Os seres humanos erram, e as pessoas espertas e sábias também erram. É por isso que temos de ter em mente que o que pensamos que sabemos pode ser falso. Mesmo que seja autorrefutante a crença geral de que todas as nossas crenças são falsas, é plausível pensar que, dada uma qualquer crença particular, essa crença pode ser falsa. Precisamos do mesmo tipo de equilíbrio que referi relativamente aos nossos professores: não podemos lucidamente em nada acreditar (apesar de podermos ter a niilista crença ilusória de que o podemos fazer – e note-se que isto é uma crença), mas também não devemos aceitar como definitivo tudo aquilo em que acreditamos.” Desiderio Murcho. Pensar outra vez. Filosofia, valor e verdade. Ebook kindle. p.74.