Argumento genérico: evidência da corrupção do Direito pela ideologia

Renato R Gomes Administrador

Chamou-me a atenção a reportagem, publicada em 09/08/2017, a qual registra nota do Comandante do Exército, em que cobra apoio jurídico para que soldados envolvidos no combate ao crime no Rio de Janeiro não sejam julgados pela justiça comum por eventuais problemas, mas pela justiça militar. O que despertou meu alerta

não foi o mérito questionável da pretensão do general, mas, especificamente, um argumento de conteúdo genérico e retórico utilizado pelo professor e jurista Daniel Sarmento, expressando a sua opinião pessoal contrária.

Formalmente, a alteração válida de competência da justiça militar, para abranger julgamento de crimes cometidos por militares no combate à violência urbana, pressupõe aprovação de emenda constitucional, e, não, lei ordinária. Sem adentrar em análise da constitucionalidade da proposta visando à “proteção” dos soldados, vou me ater ao que disse Daniel Sarmento, como um dos argumentos para reprovar a ampliação de competência da justiça militar (realmente, órgão judicial anacrônico, que perdeu a razão de existir): “Pode haver uma tendência, por exemplo, de tolerância a atos de violação dos direitos humanos da população civil.”

“Tendência de tolerância a atos de violação dos direitos humanos”. Por quê? Por mera vontade dos militares, engajados no combate ao crime, de atropelar os direitos humanos de civis? Ou por razões objetivas, face à inevitabilidade de ocorrências de violações pontuais, inerentes a situações análogas a de guerra?

Abro um parêntese. Vou desconsiderar potencial desconfiança da doutrina sobre a atuação da justiça militar, que teoricamente poderia “relativizar” infrações cometidas pelos soldados, amenizando-as pela desclassificação ou convalidando-as, para impedir punições legais decorrentes de erros cometidos em ações de combate ao crime ou em defesa da segurança pública. Desconsidero-a, porque, se atualmente vem sendo tolerado indevidamente por juristas e ministros o desprezo pelas regras penais, com o presumido e notório objetivo de dificultar ou inviabilizar a punição de criminosos e, assim, esvaziarem-se as cadeias, com mais razão ainda, deveria igualmente ser tolerada possível benevolência jurídica interpretativa do juiz militar, favorável a agentes de segurança em ação pró segurança pública. Como, no entendimento desses especialistas, criminosos fazem jus aos direitos humanos e são “vítimas” do sistema carcerário, parto do princípio que os militares, no mínimo, devem ser vistos sob a ótica da mesma tese antipunitivista ou do “desencarceramento a qualquer preço”, por eles adotada. Em síntese, o argumento da parcialidade da justiça militar mostra-se impertinente para a avaliação da questão levantada. Parêntese fechado. Adiante.

Aceitarmos a primeira hipótese significa presumirmos que o militar propriamente age como um bandido e na ilegalidade. É presumirmos a má-fé de agente público, braço armado do Estado, que deve atuar nos estritos limites da legalidade constitucional. Juridicamente insustentável, portanto.

Na segunda hipótese, quando se trata de confronto à criminalidade, há, sim, como efeitos reflexos, riscos de que ocorram infrações a direitos humanos de inocentes. São possibilidades a invasão domiciliar abusiva, mas empiricamente justificável pelo stress agudo e instinto de sobrevivência pessoal dos homens a serviço, responsáveis pelas operações de alto risco; ou morte aleatória de alguém atingido pela chamada “bala perdida”.

Contudo, neste caso, a “tendência à violação de direitos humanos”, especulada pelo professor, não é devida à atuação das forças armadas. Diversamente, decorre, sim, por si só, da existência de situação conflituosa e tensa. Ou seja, não tem pertinência com o fato de o combate ser realizado pelos soldados do Exército, pelo BOPE da PM, ou pelo CORE da Polícia Civil.

“Da população civil”. Quem constitui a “população civil”, referida pelo jurista? i) Bandidos no confronto com os agentes da segurança? ii) Inocentes que passam pelo entorno do local de conflito? iii) Qualquer pessoa que não se encontra na região do confronto?

     i) Se a referência foi feita objetivando à proteção de direitos humanos de marginais, foi colocada fora de contexto. Quem atua voluntariamente na criminalidade e afronta os agentes de segurança deve assumir as consequências jurídicas por seu comportamento (CF,5.º,II; CP,21; LINDB,3.º). Se emprega violência, natural que o Estado, por seus representantes, faça valer legalmente a sua autoridade, no exercício de seu dever, de modo necessário e proporcional, dentro do faticamente possível (CF,144;CP,23).

Excessos ocasionais? Inevitáveis; e juridicamente toleráveis. Defender o contrário é não apenas hipocrisia, por se fazer juízo de valor do comportamento de agentes em combate, sem o devido conhecimento de causa do que é estar em zona de conflito, como também covardia para com os que arriscam a própria vida na tentativa de nos garantir um mínimo de segurança ao sair de casa. Policiais e militares das forças armadas são seres humanos. Muitos têm filhos. Em situações de risco derivadas do exercício profissional, têm medo; emoções afloram. Instintivamente, também agem para sobreviverem ao conflito.

Especificamente, para o potencial criminoso ter os seus direitos humanos resguardados, basta que se conduza licitamente, como qualquer outro que assim proceda, obedecendo ao que diz expressamente a Constituição (5.º,II).

     ii) Inocentes que passam pelo entorno, infelizmente, são partes da “população civil” que aguentam indevidamente os efeitos práticos do combate localizado ao crime. Novamente, casuais violações de seus direitos não têm ligação direta com o fato de a repressão ao crime ser realizada pelas forças armadas.

iii) Qualquer pessoa que não se encontre na região do confronto. Violação proposital de direitos humanos de pessoas deste grupo que integram o conceito de “população civil” somente é cometida por alguém que age ilicitamente. Não importa se é pertencente às forças armadas, membro da polícia ou mesmo um indivíduo comum: comporta-se como criminoso, e como tal deve responder legalmente pelo seu ato.

Em suma: o argumento especulativo e genérico do Daniel Sarmento nada tem a ver com a atuação do Exército no combate ao crime ou com a pretendida alteração de competência judicial, desejada pelo general Villas Boas. Traduz-se na exposição descontextualizada da ideologia dos direitos humanos, como argumento de relevância jurídica aparente e contrário à pretensão jurídica do Comandante do Exército, de eficácia duvidosa.