O que têm em comum a condenação do Lula e a reforma trabalhista? Vejamos.
O ex-presidente foi condenado a 9 anos e meio de prisão. Justo? Injusto? Opiniões de especialistas e leigos, têm para os dois lados.
Parcela de juristas argumenta que não havia provas. Outros, que existiam provas em demasia, e Sérgio Moro utilizou argumentação conservadora.
No meio artístico ou das celebridades, mesma coisa: uns dizem que foi abusiva a condenação do “homem mais honesto” do país; não havia provas. Na outra banda, que a pena foi branda demais.
O que há em comum nessas opiniões? Duas peculiaridades.
A primeira: as duas opiniões têm como base o conceito de prova. Mais especificamente, cada opinião conflitante defende significado diferente para o que seja “prova”. Partindo da premissa de que a Constituição (5.º,LVI), o Código de Processo Penal (CPP,158-250) e o Código de Processo Civil (CPC,369) não impõem limites para a produção de provas lícitas e morais, o que seria a tal “prova” capaz de justificar juridicamente uma condenação criminal?
A segunda particularidade em comum: o viés (in)conscientemente ideológico que permeia as opiniões. Adentrando um pouco mais nas entrelinhas da discussão jurídica envolvendo a condenação de Lula, podemos ainda dividir os debatedores em dois grupos. Um deles, composto pelos que defendem, sim, a existência de provas e a aplicação eficaz do Direito. Afinal, “pau que bate em Chico, deve bater igualmente em Francisco”.
O segundo é integrado pelos que proclamam o arbítrio da condenação, por supostamente faltarem provas. Neste grupo, estão incluídos não apenas os que possuem afinidade à “esquerda” política, mas, inclusive, os “conservadores” (Maluf) e “sociais democratas” (Ciro Gomes).
Sem aprofundar no mérito do comportamento de Lula, o que me deixa estarrecido é o fato de os defensores da tese da “inexistência de provas” sustentarem-na por não ter sido evidenciado qualquer vínculo formal entre a conduta do ex-presidente e a corrupção passiva.
Segundo eles, não há documento assinado pelo condenado, uma conversa comprometedora licitamente gravada, ou algum vídeo filmado dentro das regras do jogo processual, que pudessem ligá-lo diretamente ao delito e, assim, ficar caracterizada a existência de “prova”.
Ou seja, para esse grupo, “inexistem provas”, porque implicitamente não admitem a produção delas por meios atípicos e não-convencionais, independentemente de serem lícitos e morais. Para seus membros, pouco importa que os crimes de colarinho branco, auxiliados pela tecnologia e por todo acesso instantâneo a informações, sejam difíceis de serem apurados e exijam dos órgãos de investigação o emprego de procedimentos ou meios probatórios diferenciados.
Nitidamente, esse grupo faz a chamada vista grossa para a realidade atual. Considera “absurda” a condenação de um “inocente”, baseada “somente” na conexão entre vários indícios e presunções críveis (CPP,239). É irrelevante a robustez da narrativa jurídica e faticamente respaldada, apresentada pelo juiz na fundamentação da sentença condenatória. (Sobre as narrativas no âmbito processual, recomendo a leitura de Michele Taruffo: Uma simples verdade: o juiz e a construção dos fatos. São Paulo: Marcial Pons, 2012. p.236-258. Conferir meu ebook Desmistificando a presunção de inocência, http://www.renatorgomes.com/e-books/)
Por consequência, tudo leva a crer que o grupo acha “bacana” a esperteza do brasileiro, ou “engraçadinho”, o seu jeitinho malandro internacionalmente conhecido, ambos usados pelo “amigo” para jamais deixar rastros formais pela prática de crimes que o enriqueceram. Estudar para quê?
Novamente: coerência da narrativa fundamentada em dados empíricos comprovados? Nada disso importa para esses cidadãos! Por que será? Suponho duas razões. i) Desprezam a argumentação judicial, porque a condenação de um “símbolo” político da “esquerda” representa o fim de um sonho por eles defendido, ora atrelado a um apego ideológico incondicional.
Para isso, não se fazem de rogados: se preciso for, “retiram a máscara” e evidenciam sua respectiva amoralidade, fazendo o necessário para justificar o indefensável (“todos roubam mesmo!”) ou para fingir que nada aconteceu, omitindo fatos que lhes fustigam moralmente, mas não em intensidade suficiente para terem a hombridade de reconhecerem os “erros do parceiro”. Tudo para não terem que aceitar o fracasso da própria ideologia política ou moral aplicada em terras brasileiras. É questão de hierarquia de (des)valores pessoais, portanto.
A segunda razão para rechaçarem com veemência a condenação do ex-presidente pela rejeição das provas ii) tem a ver com vínculo de “amizade”. Pois o “companheiro”, “pai dos pobres”, foi e está sendo perseguido politicamente. Opinião típica de quem tolera uma “república de compadrios” e cleptocrática.
Mas, afinal, o que é “prova”? Sucintamente, é o resultado da análise conjunta e sistematizada de todos os elementos produzidos licitamente pelas partes interessadas, e juntadas por elas ao processo, visando à demonstração de algo. No caso, demonstração da prática ou não de crime.
As controvérsias afloram porque o Ministério Público, o advogado do réu e o juiz analisam as provas de modo independente, construindo as suas próprias narrativas, independentes entre si. Com um detalhe: ao juiz, é atribuído o dever de imparcialidade. Como aferi-la? Pelo exame minucioso de sua narrativa, constitutiva da fundamentação da sentença.
Narrativa normativamente incoerente e com evidências de desonestidade intelectual implica em decisão arbitrária e nula, por vício de fundamentação (CF,93,IX). Aparece, então, novo impasse: como identificar incoerências e excesso de subjetividade nas decisões? Não há o mínimo de consenso jurídico, moral ou intelectual sobre como elaborar premissas decisórias. Como o Direito brasileiro se apresenta hoje, qualquer coisa é passível de defesa, por mais esdrúxula que seja. E fica por isso mesmo.
Infelizmente, os estudantes de Direito tendem a ficar desmotivados, ou a continuarem assim, acaso não desenvolvam o senso crítico autônomo e a habilidade para fazer análise jurídica do dito ou omitido nas entrelinhas. E os cidadãos leigos permanecerão atônitos e descrentes com o nosso Direito incompreensível. (Recomendo a leitura de meu ebook Interpretação jurídica coerente: premissas fundamentais e metodologia, no qual procuro demonstrar ser possível tornar o Direito brasileiro eficaz e coerente)
E a reforma trabalhista? Qual a sua relação com a condenação do ex-presidente? O ponto em comum entre as duas é a predominância da ideologia política em detrimento de qualquer tentativa de se alcançar coerência argumentativa com embasamento no mundo dos fatos.
Para os afinados com o idealismo da esquerda, a reforma trabalhista aprovada traduz, em seu extremo, a legitimação do trabalho escravo. Destruiu-se direitos. É o que classifico como jihadismo ideológico. Os menos radicais preveem a submissão do empregado “hipossuficiente” às vontades do empregador empresário, “lobo mau”, fragilizando o equilíbrio das relações de trabalho.
Do outro lado, os liberais, junto aos mais racionais e menos apaixonados pelo tema, a aplaudiram, por entenderem que ajudará a reduzir o desemprego e valorizará a livre negociação, com benefícios reflexos no crescimento econômico: mais emprego, mais dinheiro circulando, mais consumo, aumento da arrecadação, mais investimentos, e por aí vai.
O que nenhum dos grupos percebe é que esse debate é totalmente infrutífero. Por quê? Porque é sustentado por um exercício de “futurologia”! É impossível sabermos hoje o que ocorrerá amanhã. A reforma deixará o empregado mais vulnerável nas negociações? Será prejudicial aos trabalhadores da iniciativa privada? Será uma tragédia para a justiça social? Fará diminuir o desemprego? Aquecerá a economia? Só com o passar do tempo será possível extrair um diagnóstico.
O fato é que os debatedores, aferrando-se a prognoses empiricamente impossíveis de comprovação nos dias atuais, querem convencer seus opostos de que suas premissas político-ideológicas são as melhores ou as mais adequadas ao desenvolvimento do país, à justiça social e ao Direito. Verdadeira discussão entre surdos! Porque, além da carência de dados fáticos que as embase, há uma “regrinha básica” inerente à essência humana, ignorada por (quase) todos: ninguém convence ninguém; só a própria pessoa pode se convencer. Ou, nas palavras de Stephen Covey, “os portões da mudança só podem ser abertos de dentro para fora”.
Encerro, afirmando com o respaldo de Nassim Taleb: é erro crasso pegar o que ocorreu no passado para projetar o futuro com um senso de presumida certeza, positiva ou negativa. Pior ainda, em se tratando de relações humanas não-lineares, assimétricas e logicamente imprevisíveis! (Recomendo a leitura de Nassim Nicholas Taleb: livros Antifrágil e A Lógica do Cisne Negro)