O ministro Gilmar Mendes fez defesa enfática da classe política, durante o julgamento em que o STF decidia se
as Assembleias Legislativas também têm a palavra final sobre o cumprimento ou não de medidas cautelares judiciais impostas a seus deputados estaduais. Não entrarei nesta questão, já analisada em artigo anterior. Vou me ater aos argumentos do ministro, favoráveis aos políticos.
Dois deles merecem destaque. Primeiro: adquirimos a estabilidade institucional atual, a transição pacífica do regime militar ao democrático, graças à habilidade dos políticos, e, não, ao judiciário ou ao ministério público. Segundo: as críticas aos políticos, apoiadas pela mídia, decorrem da debilidade do Parlamento, causam instabilidade institucional e desvalorizam as instituições.
O grande problema das afirmações do Gilmar Mendes é o fato de estarem completamente cegas para a realidade dos fatos. São argumentos subjetivos e teóricos, embasados puramente nos valores ideológicos e morais do próprio ministro, ambos, de costas viradas para o contexto real – social, econômico e político – que hoje vivenciamos.
Óbvio que a atividade política é de suma importância num regime democrático. No caso brasileiro, a sua relevância é reconhecida na Constituição, com a proclamação da soberania popular: “todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos” (1.º,parágrafo único). Decisões políticas solucionam dilemas morais em uma sociedade pluralista. Pela política, faz-se leis, criando-se direitos e fixando-se obrigações. Política é traduzida em debates racionais, de interesse supostamente coletivo, da população. (Recomendo a leitura de Dimitri Dimoulis. Manual de Introdução ao Estudo do Direito. 7.ªed. São Paulo: RT, 2016. p.67-76)
Natural, então, que demande a habilidade do político, de modo a produzir as melhores ou mais oportunas decisões, como salientado por Gilmar Mendes. Mas, em hipótese alguma, habilidade para mentir ao povo; manipular informações; fazer leis tendenciosas, parciais, direcionadas para a autossatisfação; enriquecer-se ilicitamente, valendo-se do cargo para obtenção de vantagens pessoais e surrupio de dinheiro público. Esta realidade, o ministro fez questão de omitir. Aos fatos.
Boa parcela dos políticos brasileiros é PhD em mentiras; principalmente, se forem necessárias à conquista do poder estatal. Eleição da chapa Dilma-Temer, em 2014, ficou na história para a comprovação: abusou de propagandas enganosas e do uso de dinheiro “sujo”, para garantir a vitória eleitoral. Fizeram o diabo! As tentativas de políticos de implementar ideologia de gênero no ensino fundamental, ou de desarmar a população, demonstram a “habilidade” dos políticos para manipular dados, de acordo com seus interesses ideológicos ou mesmo pessoais na respectiva questão.
Códigos de processo confirmam a “habilidade” dos políticos para legislar em causa própria. Com a finalidade aparente de assegurar a ampla defesa, buscam, efetivamente, dificultar ao máximo o encerramento da controvérsia. Decisão definitiva (trânsito em julgado)? Quem tem grana consegue postergá-la a perder de vistas, bastando pagar bons e caros advogados, que saberão aproveitar as infinitas brechas legais para criar dúvidas jurídicas, e a irracional quantidade de recursos disponibilizados, alongando o litígio no tempo. O prejudicado, como de costume, é a parte que tem o direito a seu favor, mas está impossibilitada de usufruí-lo, por não termos justiça racional e eficaz.
O ministro Gilmar Mendes também passou por cima da “habilidade” dos políticos para enriquecerem-se em função do cargo. Fisiologismo? Nepotismo? Crimes contra a administração pública, ou praticados como membros de organização criminosa que dominou o Brasil? O ministro já deixou claro que não se importa com tais “detalhes”. Afinal, como não há condenação definitiva, todos são “inocentes”: o ex-governador Sérgio Cabral; o amigo Barata, pai da noiva de quem foi padrinho de casamento; o Geddel e seus 51 milhões; dentre outros. E, se todos são “inocentes”, presumidamente, no senso de “coerência” jurídica do Gilmar Mendes, os juízes que decreta(ra)m a prisão deve(ria)m perder o cargo, tamanha a irresponsabilidade de mandar(em) prender coitados “inocentes”! Não é verdade, leitor?
Volto ao primeiro argumento e o retifico: a habilidade política é essencial à democracia apenas quando empregada honestamente, para fins lícitos. Jamais, para conquistar objetivos criminosos, ilícitos ou moralmente reprováveis, em prol do autointeresse do político ou de seu grupo. Com o que temos hoje, fica difícil imaginarmos a habilidade dos políticos conduzindo o país a um nível de desenvolvimento digno de primeiro mundo. Todavia, como a nossa democracia é de fachada, compreensível que o ministro vanglorie a “habilidade” dos políticos atuais – muitos deles, seus amigos – e os considere indispensáveis à manutenção do regime “demo(clepto)crático” em vigor, com toda a sua pujança, e fortemente resistente a mudanças.
Quanto ao argumento de que as críticas se aproveitam da debilidade do Parlamento e desvalorizam as instituições, houve uma nítida inversão de ótica por parte do Gilmar Mendes. O parlamento é débil, devido aos vícios de caráter e de personalidade de grande parcela de seus integrantes. Além de não representar o interesse popular, pratica delitos diversos, motivada por fins escusos e egoísticos. Por que, ministro, V.Ex.ª considera “injusto” demonizarmos uma classe política deste quilate? Debilidade do Parlamento é sintoma; as críticas são endereçadas à causa: à péssima qualidade dos políticos em geral, que controlam o débil Congresso Nacional.
Desvalorização das instituições? Também é consequência de atuações medíocres dos parlamentares, de ministros do STF, do TSE ou de membros de qualquer outro órgão do Estado. Se o Executivo, Legislativo e os Tribunais de cúpula do Judiciário não inspiram confiança, como exigir valorização destas instituições, ministro? Críticas, fomentadas pela mídia, mais do que pertinentes!
Notemos que o pano de fundo das questões levantadas pelo Gilmar Mendes é moral. Os críticos não aceitam os desmandos e malfeitos dos políticos, que vêm sendo respaldados pela blindagem da legislação contra a efetividade das decisões judiciais, ora reforçada pela leniência interpretativa e criativa do STF ou do TSE, conforme demonstram notórios casos julgados até então. Sem contar as tentativas políticas desavergonhadas de torná-la ainda mais robusta! Por outro lado, o ministro abstrai propositalmente a realidade de sua teoria em defesa dos políticos atuais, e finge que vivemos numa democracia legítima, onde tudo funciona. A Mônica Iozzi que o diga, não é, ministro?
Por que o ministro tem essa percepção política? Acho que tudo se esclarece, quando passamos a compreender a construção de nossa gramática moral, a qual dá sentido às nossas intuições morais, que nos fazem (re)agir. Nossa moral, assim como nossa linguagem, desenvolve-se a partir do nascimento. Como ensina o psicólogo social alemão, Gerd Gigerenzer, a intuição moral pode se formar i) inconscientemente; pode estar atrelada ii) a raízes individuais, familiares – em sentido amplo – e comunitárias, bem como a uma meta emocional (evitar danos a si ou aos amigos, por exemplo), podendo ela, intuição, ser descrita por regras ou métodos empíricos; e iii) pode depender do meio social. (Gerd Gigerenzer. O poder da intuição. O inconsciente dita as melhores decisões. Rio de Janeiro: BestSeller, 2009. p.214-237)
A intuição moral inconsciente se manifesta sempre que tomamos uma decisão repentina e não conseguimos justificá-la racionalmente em palavras. A “deliberação racional é a justificativa, e não a causa, das decisões de sentido moral”. Por que reprovamos o incesto, mesmo que haja afeto entre o casal, e cuidados anticoncepcionais? Por que somos capazes de doar todo o nosso dinheiro da carteira, para ajudar alguém necessitado numa situação comovente, e ficarmos sem nada no bolso para custear as nossas próprias despesas pessoais e indispensáveis do momento?
A moral, fundada em raízes individuais, carrega valores inerentes à liberdade. Valoriza o indivíduo, como ser humano racional e capaz. Autonomia privada, autorresponsabilidade, livre arbítrio na escolha, respeito ao próximo. É moralmente reprovável tomarmos decisões que interfiram na liberdade individual alheia. Quando fundamentada em raízes familiares, preponderam valores relacionados ao grupo, à sua coesão, ao seu fortalecimento: lealdade entre seus membros; proteção recíproca; segurança da “família”; respeito à hierarquia e à liderança no grupo, ou à igualdade de tratamento dispensada a seus membros. Se for necessário interferir nos direitos dos que não pertencem à família, será aceitável ou tolerável moralmente, pela ótica da ética familiar.
Se a concepção moral estiver assentada na comunidade, os valores serão guiados pelo bem-estar coletivo, pela busca da solidariedade, da construção do vínculo de reciprocidade. Respeito às leis; à autoridade; à ética preponderante na comunidade; à igualdade. Nota-se que, quando tratamos de questões morais comunitárias, a ideologia política do indivíduo influirá diretamente na leitura moral dos fatos. Liberal? Social-democrata? Socialista? O Brasil é um laboratório “excelente”: qualquer decisão moral pode ser mascarada pela juridicidade e, assim, testada. Independentemente do resultado socialmente lesivo que possa advir, nada acontece aos responsáveis políticos. A Suprema Corte não me permite estar enganado.
O meio social onde crescemos e aprendemos também influencia a nossa formação moral. Valores adquiridos numa favela tendem a divergir dos absorvidos em ambiente espiritualizado. Não significa necessariamente que a falta de exemplos que pudéssemos modelar durante o período de formação de caráter e da personalidade, ou a carência de oportunidades para acessar educação de qualidade, sejam razões justificativas para práticas de condutas consensualmente imorais ou, no limite, criminosas. O próprio Direito nega esta possibilidade (CF,5.º,II;LINDB,3.º; CP,21).
Penso que as decisões tomadas pelo ministro Gilmar Mendes para soltar réus presos, e os argumentos por ele utilizados para defender políticos indiscriminadamente, como se a Cleptocracia brasileira inexistisse, são motivados por uma moral enraizada na ideia de família. Família política, de compadres; quase mafiosa. Proteção de amigos políticos e empresários; recusa em se declarar juridicamente suspeito para atuar em processos, mesmo diante de flagrantes evidências fáticas contra si e atestadas por juristas. Modo implícito de “dar a cara a tapa”, pelo uso do arbítrio institucional, visando à leal defesa dos que lhe são fraternos. Usa, portanto, da sua autoridade e certeira im(p)unidade judicial, para empurrar goela abaixo dos cidadãos o padrão GM de integridade, em detrimento da credibilidade do Judiciário e, especificamente, do Supremo Tribunal Federal. Lealdade à família e sua preservação acima de tudo. O que fazermos? Das instituições brasileiras atuais, não podemos esperar nada, como diria o Barão de Itararé (“De onde menos se espera, daí é que não sai nada.“)
Uma coisa é certa: o ser humano, como regra, somente sai da “zona de conforto“ quando a sua dor se torna insuportável. Presumo que a dor da população brasileira, no geral, ainda não é tão incômoda. Aguardemos as cenas dos próximos capítulos na política e no STF.