Regra geral, não há debate jurídico sério no Brasil. Reina a discussão entre cegos e surdos, pela qual
as partes não abrem mão de suas premissas ideológicas e as mascaram com menções ao direito, mas, por outro lado, querem, porque querem, convencer o oponente de que ele está “errado”. É o retrato cotidiano da realidade jurídica nacional. É o que chamo de direito esquizofrênico.
Novamente: o que é Direito? São leis, somadas às interpretações que os intérpretes fazem delas. Ou, mais especificamente, ao significado que os intérpretes atribuem a seus textos. As leis são as mesmas para todos; são redações fixas. Mas, as interpretações, podem variar de acordo com a quantidade de intérpretes existentes. Como cada um escolhe arbitrariamente o contexto e os artigos de lei, para que consiga construir a interpretação que mais se adeque à sua conveniência ideológica ou moral, os resultados possíveis tornam-se infindáveis. Portanto, existem tantos possíveis direitos quanto for o número de intérpretes.
Se cada julgador ou jurista tem o seu “direito” e porta fé cega naquilo em que acredita (o próprio conhecimento e padrão moral ou ideológico), óbvio que qualquer debate envolvendo o Direito, no fundo, não passa de confronto entre versões ideológicas ou morais discrepantes. Consequência natural é termos o desprazer de assistirmos estarrecidos ou indignados as oscilações do conteúdo de decisões judiciais, que varia de uma vara cível ou criminal para a outra ao lado, de uma turma a outra do STJ, ou da 1.ª para a 2.ª turma do STF, ou, ainda, de um ministro do STF para o outro, que nem um pouco se incomoda de atropelar a própria jurisprudência firmada pela Corte, ou de mudar de entendimento ao sabor de quem seja o réu da vez (compadre ou desafeto).
Por que tem que ser assim? A questão é de trato psicológico ou mesmo psiquiátrico do julgador que se enquadre nesse perfil de personalidade, traduzido no seu agarramento ao que sabe e no fato de se fechar ao novo, devido à ignorância, má-fé ou limitação intelectual, ou de qualidade de caráter, moralmente questionável, evidenciada no egocentrismo e nas manipulações escancaradas que faz do sistema jurídico, arrogando-se a dono da verdade constitucional.
O eleitor também não está imune a críticas; somos nós quem elege os parlamentares, responsáveis pela criação das leis. Se não queremos integrantes de organização criminosa como representantes do Poder Legislativo, ou sujeitos que somente se preocupam em legislar em causa própria, que façamos melhor o nosso papel de cidadão, optando, no mínimo, por candidatos verdadeiramente honestos, e, não, apenas aparentemente.
É certo que a legislação eleitoral atual é leniente com a criminalidade, permitindo que réus condenados sejam eleitos. E que esta aberração é confortavelmente chancelada pelo STF, como se a interpretação que se faz da presunção de “inocência” (5.º,LVII), preponderante hoje, menosprezando a exigência de moralidade e probidade política (14,§9.º), fosse a mais adequada ou a vontade real da Constituição (coitada; muda que é, não pode se defender!). Mas, o fracasso da Suprema Corte como guarda efetivo – e, não, contingencial, como o é de fato – da Constituição e sua incapacidade de zelar pelo funcionamento do sistema político de modo condizente com um regime democrático legítimo, não pode ser justificativa para isentar a população da responsabilidade cívica pela péssima qualidade do político que regularmente vem sendo eleito.
Exemplo concreto de lei ruim, que retrata inequivocamente a qualidade dos parlamentares que temos e, presumidamente, a moralidade predominante na política e para o eleitor. Lei criada para beneficiar ricos e poderosos, mostrando que a igualdade de tratamento (5.º,caput,I), segundo a qual as regras devem ser a todos aplicáveis indiscriminadamente, é pura falácia. Está aí o código de processo civil. Mais exatamente, a quantidade exagerada de recursos disponíveis para o vencido no processo postergar ao máximo uma decisão judicial que lhe seja desfavorável. Normalmente, fundamenta-se esta indecência legal como sendo a instrumentalização do direito constitucional à ampla defesa (5.º,LV). Mentira. Duas razões, ao menos.
A primeira foi dita pelo ministro Luís Roberto Barroso: ampla defesa não significa processo sem fim. Até porque o seu alongamento infundado prejudica quem teve o seu direito judicialmente reconhecido. Processo que se arrasta caracteriza a injustiça no caso concreto. A Constituição afirmar que nenhuma ameaça de lesão ou lesão a direito pode ser afastada da apreciação do Poder Judiciário (5.º,XXXV) torna-se um deboche, diante do código de processo vigente e do notório pulso frágil do Poder Judiciário para inibir abusos processuais.
A segunda: como se alegar que os recursos garantem a ampla defesa, se um cidadão pobre ou da classe média não tem dinheiro para arcar com as despesas de um litígio processual, levando-o ao STF, se necessário? Sim, porque as despesas processuais e com advogado são bastante altas. Não são para qualquer do povo. São, sim, para empresários bem-sucedidos, políticos, ministros do STF. Cidadão comum? De repente, algumas encarnações a frente.
Fácil entendermos por que nossos códigos de processo estabelecem tantos recursos e tantas brechas para advogados questionarem formalidades: anulam-se processos inteiros já adiantados, postergando-se decisões finais por anos, em prejuízo dos que têm direitos e da sociedade, quando a matéria é criminal. Quem se beneficia desse sistema processual? Você responde, Leitor.
E onde reflete a personalidade do julgador e o seu caráter no Direito? Condicionam a eficácia e a credibilidade do sistema de Direito perante a população. Exemplifico com três decisões tomadas pelo ministro Gilmar Mendes. Duas, como julgador; uma, como cidadão.
O ministro concedeu habeas corpus ao empresário Jacob Barata, preso pelo juiz federal Marcelo Bretas. Qual o problema? O fato de o ministro ter sido padrinho de casamento da filha do empresário. Para o ministro, ele não deveria ter se declarado suspeito ou impedido. Disse que não tem relação de amizade como empresário. Não é o que pensa um ou outro ministro do STF. Mas o nosso sistema judicial é assim: a demonstração de parcialidade feita pelo Ministério Público Federal não valeu de nada. A ministra Carmen Lúcia engavetou o pedido de suspeição do ministro (CPC,145,I). E os cidadãos são obrigados a acreditar na sua aparência de honestidade e imparcialidade. Afinal, ser considerado “suspeito”, por lei (CPC), é decisão de foro íntimo (145,§1.º) do próprio julgador. Mas, data venia, não em casos como esse, em que a seriedade e a credibilidade do Supremo são colocadas em xeque!
Por outro lado, o “exemplar” Gilmar, com uma só canetada, desautorizou a transferência de Sérgio Cabral para presídio federal em outro Estado, que havia sido determinada também pelo juiz Marcelo Bretas. Alegou que, diferentemente do que dissera o juiz, que este não fora ameaçado veladamente pelo ex-governador, em audiência. Para o ministro, o fato relacionado a familiares do juiz, mencionados pelo preso, já eram conhecidos. E, por serem conhecidos, a referência a eles descaracteriza qualquer ameaça.
Ou seja, para o ministro, pouco importa o que as pessoas pensam sobre a sua imparcialidade ou suspeição para julgar processo no qual suposto amigo é réu. Vale a palavra dele, imposta de cima para baixo, a forceps, com a conivência do próprio Supremo, implícita na omissão em julgar o pedido de suspeição feito pelo MPF. Por outro lado, acha-se no direito de desqualificar o sentimento de ameaça de um juiz de primeira instância, que vive sob escolta constante, por estar responsável por julgar fatos envolvendo organização criminosa. Pimenta nos olhos dos outros não arde, não é verdade?
Como cidadão, o ministro processou a apresentadora Mônica Iozzi, por esta ter criticado sua decisão judicial de soltar o médico estuprador, até então preso, e, em seguida, este ter fugido do país. Por incrível que pareça, o juiz de primeira instância condenou a apresentadora ao pagamento de danos morais. Liberdade de expressão (5.º,IV)? Em hipótese alguma! Violação da “honra” do ministro; sim, claro!
Código de processo civil, retratando a moralidade política, aprovada pelo eleitor; os três casos concretos, cujo protagonista foi o supremo ministro Gilmar Mendes, espelhando a sua personalidade e o seu caráter, expressados pelo julgador que é. Personalidade e caráter reprováveis? Seria leviandade de minha parte emitir aqui juízo de valor sobre o modo de ser do ministro. Agora, é fato que a manifestação do seu modo de ser personalíssimo tem reflexo direto na eficácia e credibilidade do Direito, assim como o dos juízes Marcelo Bretas, Sérgio Moro e do que condenou a Mônica Iozzi a indenizar moralmente o supremo ministro insuspeito. Inegável.
“Nas situações do dia a dia, as regras só são conhecidas parcialmente, podem ser subvertidas por quem é mais poderoso ou são mantidas intencionalmente ambíguas. A incerteza é constante; a trapaça, a mentira e a violação das leis são possíveis. Por isso, não se conhece nenhuma estratégia otimizada para vencer uma batalha, administrar uma organização, criar filhos ou investir na bolsa. Mas, é claro, existem estratégias minimamente aceitáveis.”(Gerg Gigerenzer. O poder da intuição. Rio de Janeiro: BestSeller, 2009. p.111-112)