Sim: vamos abortar; sou favorável a que sejam abortadas, “para ontem”,
as “asas” dos ministros do STF. Já perderam a vergonha de abusar do poder jurisdicional. Não há limites jurídicos para eles. O único limite é a própria vontade individualizada. Ou, mais especificamente, os significados que cada um atribui ao texto constitucional, independentemente de qualquer lampejo de coerência. Nem mesmo consensos atingidos nos julgamentos em Plenário impõem-lhes limitações. São onze supremos que dão as cartas aleatoriamente.
Aproveitando-se de que o Congresso está de cócoras, inerte, com déficit crônico de representatividade, sem credibilidade, humilhado perante à população, rotineiramente, há sempre um “supremo iluminado” que, abusando do poder institucional, dá propositalmente uma de “João sem braço” e avoca a competência do Congresso Nacional, decidindo monocraticamente, por “inspiração divina”, que o texto do artigo A, da Lei L, é “inconstitucional” porque “não foi recepcionado pela Constituição”, ou que a redação do artigo B “não admite a interpretação” no sentido S.
Posso estar sendo questionado: “Renato, mas não cabe ao STF decidir sobre a constitucionalidade de leis anteriores à Constituição e fixar os sentidos possíveis dos textos de lei?” Sem dúvida! Desde, obviamente, que i) use critérios normativos objetivos; ii) não invalide leis ou interpretações, baseado em juízo de valor moral ou ideológico, mascarado com o “direito” inventado oportunamente pela própria Corte; iii) não manipule significados, de modo a justificar o exercício de uma competência que, juridicamente, não possui.
Lamentável e absurdamente, o STF aceitou e assumiu arbitrariamente a responsabilidade de decidir se o aborto praticado até a 12.ª semana de gestação é juridicamente válido, a pedido do PSOL (ADPF 442). Neste caso, parafraseio a crítica ácida do Ciro Gomes ao Judiciário: o STF deveria ser embalado numa caixinha apertada, para que “suas excelências” se acalmassem e pudessem repensar sobre suas atuações com legitimidade democrática para lá de questionável.
Inexistem critérios normativos objetivos que autorizem o aborto, salvo as exceções autorizadas na lei (gravidez em razão de estupro; risco de morte para a gestante) e a exceção criticável, mas juridicamente tolerável, construída pelo STF, ao decidir a ADPF 54 (gravidez de anencéfalo; análise crítica aprofundada no meu ebook STF e Interrupção de Gravidez: o que esperarmos).
Em tese, os textos legais vigentes retratam a vontade da maioria da população, relacionada à certa matéria. No que tange ao bem de valor inestimável chamado vida, o legislador nada mais fez do que garantir genericamente na Constituição o direito à vida de toda espécie de ser humano, independentemente do respectivo estado evolutivo (5.º,caput), resguardando os direitos do nascituro no Código Civil (Lei 10.406/02,2.º) e a defesa de sua vida, especificamente, no Código Penal (DL2848/40,124-126), ameaçando, com pena de prisão, a mãe e o aborteiro (médico?) que, a bel-prazer, matem o bebê em gestação. Vale frisar que, não obstante a regra penal criminalizadora estar em vigor há quase 80 anos, o valor moral que a legitima – respeito à vida – prepondera socialmente até hoje: quase 80% são contrários a legalização do aborto.
Os “advogados do diabo” de todos os quilates, de profissões várias, “sabichões”, berram: i) “E o direito à liberdade de escolha da mulher?” ii) “E à dignidade da mulher?” iii) “As mulheres ricas pagam ‘por fora’ o aborto em ‘boas’ clínicas clandestinas; são as pobres que sofrem e correm o risco de morte! É questão de ‘justiça social’, ‘igualdade material’, ‘saúde pública’!”
Serei educado; não chamarei tais “adevogados” de burros. Vou racionalizar e considerá-los como portadores de miopia interpretativa, acreditando estarem de boa-fé e serem intelectualmente incapazes de enxergar o sistema jurídico como um todo integrado, harmônico, coerente. Os de má-fé, impulsionados por uma cegueira intencional e seletiva, desonestos intelectualmente, que manipulam o sentido dos textos legais para forçar ou induzir o Judiciário a construir regras tendenciosas e adequadas às suas preferências ideológicas, estes…, desprezo-os. São carcinomas humanos que, enquanto não extirpados do métier jurídico-acadêmico, serão sempre obstáculos à efetividade e credibilidade do Direito.
As três objeções somente são apresentadas pelos aborteiros, e levadas em conta pelo Judiciário, tão só porque o “direito” brasileiro esquizofrênico é leniente com o ilícito, quando, não, conivente com a criminalidade, com a “suprema” chancela da Corte de “notáveis”. Não existe Democracia verdadeira num Estado onde o sistema jurídico não inibe infrações e tampouco as pune exemplar e pedagogicamente. Muito menos ainda há que se falar sinceramente em Democracia, num Estado onde o criminoso tende a ser vitimizado, e a vítima real, que age em legítima defesa, corre o risco de ser transformada em criminoso pelo Ministério Público (titular da ação penal contra bandidos) e, lotericamente, pelo Judiciário! Fatos falam por si. O leitor que discordar está convidado a dar um passeio pelo Rio de Janeiro, à noite, com a família, a pé, preferencialmente. Ficarei em casa, na torcida para que tudo saia a contento e a comprovação empírica torne-se dispensável.
Pois bem. Refuto os três argumentos retóricos dos “diabinhos” com dois contra-argumentos, que batem de frente com qualquer interpretação que leve à banalização da autorresponsabilidade (CF,5.º,II) e, obviamente, do ilícito. Seguindo meu estilo, agarro-me ao melhor dos métodos para construir e sustentar minha argumentação: o método socrático.
Primeiro. “’Minha jovem’, engravidou por quê? Você foi estuprada? Ou negligenciou nos cuidados para evitar a gravidez? Você não sabia que aborto é um crime notório? Sabe por que é crime? Porque o futuro bebê gestado já é considerado ser humano para a Ciência e o Direito, com dignidade e direito à vida constitucionalmente protegidos, além dos direitos mais, assegurados pela lei civil.”
Segundo. Liberdade, intimidade, dignidade da mulher? “Justiça social” pela “igualdade de tratamento”? Questão de “saúde pública”? O que significam tais expressões linguísticas? Como delimitar o conteúdo de cada uma? Quais parâmetros adotar? Por que o parâmetro P1 ao invés do P2? E por aí vamos, indefinidamente.
Sei que você sabe, leitor: a liberdade de um termina, quando começa a do outro. Engravidou? Perdeu a “liberdade”; aborto envolve direito à vida de outro ser humano, inegociável por mera liberalidade. Gravidez a contragosto “afeta” a dignidade da mulher? Hipocrisia; que pensasse, antes, em abortar a promiscuidade, ou fosse mais zelosa com ações contraceptivas. “Justiça social”? Noção vaga, de conteúdo vazio, indefinido ou flexível, totalmente dependente da perspectiva personalizada da realidade que cada um de nós faz, de acordo com a própria filosofia moral ou político-ideológica. É fato, que independe inclusive de alfabetização: pouco importa a diferenciação pobre-rico, pois todos sabem como se gera uma criança e que aborto é crime (LINDB,3.º).
Recaímos no primeiro contra-argumento: assumiu o risco de engravidar por quê? Digo mais: em nome da “justiça social”, defender o critério de discriminação pobre-rico para justificar o aborto praticado por mulheres pobres, carentes de condições de pagar clínicas “boas” ora acessadas só por ricos, caracteriza um espiritual, científica e juridicamente insustentável argumento de vitimização do pobre; o fomento ao “coitadismo” e à irresponsabilidade pessoal; o patrocínio, consciente ou não, de um determinismo social inconcebível, como se o fator “ser pobre” pudesse, por si, anular o livre-arbítrio da mulher. Livre-arbítrio, aliás, peculiaridade que dota o homem – rico ou pobre – de razão, da possibilidade de escolha entre o lícito e o ilícito, e o difere do animal.
Portanto, nas controvérsias envolvendo o aborto, o único critério normativo objetivo que viabiliza solução conforme o sistema de Direito em vigor é o que está posto no Código Penal e na decisão do STF na ADPF 54: estupro, risco de morte ou anencefalia? Permite-se o aborto. Qualquer outro fundamento será mero capricho ou egocentrismo. Respeite a lei, “minha jovem”, que você passará muitíssimo longe do atendimento emergencial da saúde pública caótica, e ainda fará um favor em cuidar indiretamente para que o dinheiro público não seja desperdiçado.
Especulando com os meus botões, acho que você, amigo leitor, merece duas informações a mais, em resposta a duas dúvidas passíveis de estarem flanando na sua mente.
Dúvida 1. Se cabe ao Congresso Nacional legislar sobre direito civil e penal (CF,22,I) e, desta forma, resolver dilemas morais existentes e conturbadores da vida na sociedade; estando o dilema moral em torno do aborto já solucionado desde o início da vigência do Código Penal de 1940, e sendo, ainda, o regramento do tema amplamente satisfatório e de acordo com a moral social predominante, por que cargas d’água os “moralmente imaculados” ministros supremos acham-se no direito de julgar se a moral e a vontade de minoria pró-aborto deve sobrepujar a moral e a vontade contrária da maioria, retratada legitimamente na criminalização do aborto e na proteção dos direitos do nascituro?
Nas entrelinhas, fiz uma leitura personalíssima. Descobri, subliminarmente, duas razões para a ousadia suprema.
Razão 1. O STF tende a fazer o que o genial Arthur Schopenhauer já classificava, no século XIX, como um estratagema sofisticado e malicioso para vencer debates: manipulação semântica (Como Vencer um Debate sem Precisar Ter Razão em 38 Estratagemas (Dialética Erística). Rio de Janeiro: Topbooks, 1997. P.142-145).
Há espécie de manipulação semântica, por exemplo, quando uma expressão linguística, com sentido genérico e indefinido, é usada retoricamente pelo intérprete para qualificar uma situação como estando abrangida teoricamente pelas possibilidades semânticas das palavras, mas, simultaneamente, omitindo proposital ou inconscientemente da situação, sutileza(s) que demonstraria(m), na prática, a distorção de sentido que almeja fazer valer.
No caso do aborto sob análise do STF, a questão foi classificada e admitida, conscientemente ou não, pela ministra Rosa Weber, como “controvérsia jurídica” carente de resposta precisa. Erro grosseiro, flagrantemente incompatível com o “notável saber jurídico” que se pressupõe de um membro do Tribunal de cúpula (CF,101). Controvérsia jurídica existiria se não houvesse solução unívoca e válida oferecida pelo sistema jurídico, devido a ambiguidades da linguagem ou a seu conteúdo vago.
O que há, na verdade, é um dilema moral falso, pois inexistente, forjado como pano de fundo por uma minoria de “advogados do diabo”, para dar aparência de legitimidade à judicialização do tema “descriminalização do aborto”, resolvido há décadas pelo Legislador. Mas, para o STF de hoje, nenhuma importância tem se existe ou não controvérsia jurídica real, porque nada, absolutamente nada o constrange a parar de interferir na atividade legiferante ou limita juridicamente o seu protagonismo ativista.
Não será surpresa se a Corte passar uma rasteira no Congresso Nacional e decidir por restringir a aplicação da regra penal proibitiva do aborto, criando nova exceção, espécie de aborto supremamente leviano. Apostaria uma viagem para a Coreia do Norte – a ser ganha como prêmio pelo perdedor -, que o STF extrapola no ativismo judicial, simplesmente por estar contaminado ideologicamente, e “livre, leve e solto” para agir sem amarras jurídicas, conforme a ideologia de preferência e o discurso politicamente correto, imposto pela minoria mais esperneante! Daí advém a segunda razão.
Razão 2. Certeza da impunidade. A Lei Orgânica da Magistratura impede a punição de juízes, desembargadores e ministros, motivada por falhas de interpretação que levem a decisões equivocadas (LC35/79,41). Justo. Numa Cleptocracia Anárquica como a nossa, na qual o tráfico de influência grassa, impensável a criação de um tipo penal de hermenêutica. Como os valores por essas bandas são costumeiramente invertidos, Sérgio Moro e Bretas estariam presos, e o Favreto, solto.
Mas não é só a LOMAN que protege os ministros do STF. O fato é: o texto constitucional não prevê qualquer resposta objetiva e de fácil aplicação que eficazmente os impeça de fazerem o que querem, dizendo que “o vermelho, a partir de agora, será verde, e ponto final”. Perda de cargo de Ministro por impeachment aprovado pelo Senado (CF,52,II)? Condenação por crime comum pela própria Corte (CF,102,I,b)? Utopias. Ademais, está enraizado – corretamente – no senso comum jurídico que, na “democracia” brasileira, cabe ao STF a última palavra jurídica, por ser o guardião da Constituição (CF,102,caput). Inexiste, todavia, qualquer debate sobre o que fazer se esta “última palavra” eventualmente configurar uma aberração jurídica, estupradora da Constituição. Aflora, então, a dúvida 2.
Dúvida 2. Se o STF decidir de modo inequivocamente usurpador da competência do Congresso Nacional – como ocorrerá na hipótese de construir inconstitucionalmente a excludente especial de ilicitude do aborto supremamente leviano -, que consequências práticas poderão ser tomadas?
Para encurtar o papo, vou me ater a possíveis atitudes a serem tomadas pelo Poder Executivo (Presidente da República) e pelo Legislativo (Congresso Nacional). Pressuponho a observância de uma regra geral de comportamento, na qual qualquer cidadão pode se escorar: ordem juridicamente inválida não se cumpre (CP,22 c/c 124 e 126). Ordem, inclusive, que advenha do STF, composto por onze cidadãos de carne e osso, falíveis, com habilidades e limitações como qualquer pessoa.
Presidente da República. Como Chefe do Executivo, poderá, via medida normativa adequada, i) proibir que a rede de saúde pública federal disponibilize a prática do aborto supremamente leviano. Poderá, também, ii) determinar à Polícia Federal o descumprimento de qualquer medida coercitiva determinada pelo STF, visando ao cumprimento compulsório dos procedimentos abortivos por parte de agentes de saúde que se recusem a executá-los.
Os “diabinhos” poderão acusar o Presidente de crime de responsabilidade, por estar impossibilitando o cumprimento de decisão judicial (Lei 1079/50,12). Engano: como disse, ordens ilegais não são acobertadas pelo sistema jurídico e, portanto, devem ser recusadas, sendo irrelevante a fonte.
Congresso Nacional. De bom grado será a aprovação de uma Emenda Constitucional que estabeleça limites concretos à atuação do STF, impedindo, consequentemente, a judicialização de assuntos para os quais dilemas morais foram legitimamente pacificados pelo Legislativo, ou inexistam de fato.
Minha opinião sobre qual será a decisão final do STF? Não tenho. Mas, certamente, nada me causa espanto, no que se refere ao Supremo Tribunal Federal hodierno.
“É mais chique falar em comportamento do que em ética. Em certo sentido (repetição proposital), porque a palavra ética, hoje em dia, é, como a palavra energia, melhor que seja evitada porque todo mundo fala, mas ninguém sabe o que é. Há algo mais nessa ideia de marketing de comportamento. A substância moral pública sempre foi a hipocrisia, portanto não há nada de novo em se tentar fingir virtudes que não se tem. Mas, hoje, perdeu-se essa consciência de que toda moral pública é hipócrita na sua essência e, por isso, as pessoas que fingem ser do bem não são percebidas como hipócritas. Nunca na história da humanidade fomos tão mentirosos como hoje. A ideia de que fazer propaganda da própria virtude (os coretinhos do mundo) possa ser levada a sério é ridícula.” (Luiz Felipe Pondé. Filosofia para Corajosos. Ebook Kindle. Posições 1011-1014)