Valores não estão imunes a críticas e, muito menos, podem ser impostos a terceiros ou a governos democráticos legítimos!

Renato R Gomes Administrador

O que é arte? Quem a define? E tolerância: o que a evidencia? Uma exposição, apenas por

ser considerada “artística” pelos seus criadores, pode ser considerada exercício da liberdade de expressão (CF,5.º,IX) e, por isso, ser capaz de obrigar o poder público a admiti-la incondicionalmente, para que não seja caracterizada a censura (CF,220,§2.º)? Ou o veto do poder público à realização da exposição caracteriza censura, fundada em intolerância?

Arte é conceito aberto; cada um a define de acordo com os seus valores personalíssimos. Tolerância é núcleo do pluralismo; e, este, fundamento do nosso Estado democrático (CF,1.º,V). Traduzindo: todos temos o direito de acreditar e defender qualquer opinião, convicção ou crença moral, ideológica ou de qualquer natureza, desde que não ofendamos a pessoa, a imagem ou a honra de quem adote posicionamentos divergentes (CF,5.º,X). Se pensar e portar valores é inerente à essência da dignidade humana (CF,1.º,III), natural que tenhamos o correspondente direito de manifestá-los e protegê-los, inclusive por meio de criticas argumentativas fortes e ácidas contra o que discordamos. Friso: o foco da crítica é o conteúdo do que reprovamos por questões de valores, convicções ou crenças pessoais; jamais a pessoa que pensa diferente e o considera.

Repercute a decisão do prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, de ter proibido a exposição do Queermuseu no Museu de Arte do Rio (MAR), por ter sido interpretada como incentivadora da pedofilia, da zoofilia e do desrespeito a símbolos religiosos.  Legítima a decisão do prefeito? Não tenho dúvidas em afirmar: sim; juridicamente aceitável.

Não importa, no caso, se o conteúdo da exposição pretendida pelo Queermuseu i) deve ou não ser tido como artístico, ou ii) se incentiva ou não comportamentos socialmente deploráveis. Isto é juízo de valor juridicamente irrelevante para solucionar o impasse. Porque, ao afirmarmos sim ou não, estaremos discutindo o sexo dos anjos; subjetivismo puro! A regra é o ser humano estar apegado ao próprio conhecimento e às suas crenças. E, quando apegado, não está aberto a escutar e tampouco a se convencer do contrário.

Aos fatos. O conteúdo do Queermuseu é arte? Sim, pois cabe aos seus idealizadores preencher este conceito com seus valores e crenças. Se é arte, a exposição está assegurada pela liberdade de expressão artística? Sem dúvidas. Por ser constitucionalmente respaldada, a exposição pode ser realizada em qualquer espaço público? Eis o ponto: não; não pode.

No caso, a exposição ocorreria no Museu de Arte do Rio (MAR), o qual é financiado pelo Município, ora governado pelo prefeito Marcelo Crivella. Financiamento e manutenção implicam em gastos de dinheiro público, que ocorrem de acordo com as políticas públicas e de investimento do governo municipal da ocasião. Políticas que são efetivadas conforme a discricionariedade constitucional do governo municipal (30,caput,III). Além disso, como prefeito, temos que presumir que Marcelo Crivella representa os valores morais predominantes dentre os cidadãos residentes na Capital do Estado. Afinal, foi eleito democraticamente pelo voto majoritário.

Portanto, se os curadores do Queermuseu desejam expor a sua arte controversa e estão inconformados com o veto municipal à utilização do Museu de Arte do Rio, que custeiem então, do próprio bolso, espaço privado para realizá-la, ou, como alternativa, que a faça gratuitamente, valendo-se do direito constitucional de reunir-se em local aberto ao público, e sem imposição de despesas ao ente municipal, o que independe de autorização oficial para ser exercido (5.º,XVI). E, em sendo bem frequentada e aceita pelo público, com o sucesso comprovado empiricamente, dificilmente o prefeito atual ou futuro deixaria de apoiar o evento novamente! Longe disto: não houve apoio popular manifesto demonstrado à exposição criticável do Queermuseu que justificasse uma postura diversa do prefeito Crivella, de modo que este fizesse preponderar a moral social contida na vontade popular, em detrimento da sua pessoal.

Ministério Público Federal, juristas e artistas criticaram a decisão do prefeito? Perfeitamente aceitável; discordâncias e críticas – repito – são inerentes ao regime democrático e participativo, como supomos vigorar no Brasil. Igual garantia é assegurada ao prefeito: discordar do conteúdo artístico, criticá-lo e, no caso, proibir a sua exposição em ambiente mantido com dinheiro público sob a sua gestão, com apoio do povo que o elegeu.

Poderia ainda ser questionado: “Mas o prefeito está levando os valores pessoais dele para a administração pública!” Sim. E qual o problema nisto, se inexiste qualquer vedação constitucional, mas, sim, autorização implícita no pluralismo? De novo: a população, majoritariamente, escolheu o cidadão Marcelo Crivella para governar a cidade do Rio. Cidadão portador de valores e crenças como quaisquer outros, tais como o são os idealizadores do Queermuseu, os Procuradores da República (MPF), os juristas, os advogados e os artistas que reclamaram, e o Manuel da padaria. Contudo, valores e crenças do prefeito que foram aceitas pelo eleitor, e que presumidamente já eram conhecidas, devido ao longo período em que se dedica à vida pública.

Decisão, portanto, abarcada pelo exercício do poder discricionário do agente político, prefeito Marcelo Crivella, sendo juridicamente inquestionável.

O problema aqui no país é a hipocrisia do politicamente correto que ainda reina. Fala-se muito em democracia, em sua defesa, na necessidade de respeitá-la. Mas desconhecemos ou recusamos um dos pressuposto de sua essência: o dever de aceitarmos ou tolerarmos críticas ou rejeições em relação a nossos valores e crenças, quando não forem ofensivas à imagem ou à honra e tiverem respaldo jurídico.  Mas a vida nos ensina.