Brasil é Estado de Democrático de Direito?
Na teoria sim. Na prática, evidente que é um Estado de “direito” de conveniência. No momento, abstenho-me de argumentar sobre a nossa “democracia” cleptocrática. Menciono apenas uma característica marcante e comum às Democracias verdadeiras e às “democracias” cleptocráticas: a eleição do governante (Prefeito, Governador e Presidente) e parlamentares pelo voto direto.
Aliás, esta característica formal é aquela da qual se valem os cleptocratas tupiniquins e “especialistas” ideólogos afins, para, da boca para fora, ressaltarem como um mantra a vitalidade de nossa “democracia madura”.
Mas o foco agora será no “belo” e inusitado Estado de “direito”. Vejamos o caso do impeachment do Prefeito do Rio de Janeiro.
Pressuponho que o Brasil preencha minimamente alguns dos requisitos dignos de Estados de Direito. Dentre eles, destaco aqui o direito à ampla defesa e a qualificação da advocacia como atividade essencial à justiça. Daí, naturalmente, torna-se constitucionalmente inconteste que o advogado é profissional ímpar, indispensável ao funcionamento do Estado de Direito.
Por que isso? Se o nosso sistema jurídico é expresso ao proibir condutas ilícitas (CF,5,II), bem como ao impedir que qualquer cidadão alegue sua ignorância jurídica para justificar uma ilegalidade cometida (LINDB,3; CP,21), eximindo-se das responsabilidades civis, administrativas ou penais, presumidamente surge a necessidade imperiosa de que haja profissionais habilitados a orientá -los – advogados – quando houver dúvidas sobre se o correto será agir do modo X ou Y.
Afinal, se a maioria da população é juridicamente leiga, essa exigência do sistema de direito só faz sentido se houver oportunidade de as pessoas se consultarem previamente com alguém apto e hábil a lhe assegurar a licitude do ato ou da conduta pretendidos.
Entra em cena o Prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella. Foi acusado por servidor exonerado de ter renovado contrato ilegalmente, violando a lei de licitações e, indiretamente, causando prejuízo financeiro ao cofre municipal, por renunciar receita que adviria de processo licitatório.
Contudo, há uma peculiaridade fundamental: o Prefeito praticou o ato administrativo – então questionado e ora motivador do processo de impeachment aberto contra si na Câmara Municipal – com a orientação jurídica prévia da Procuradoria do Município do Rio de Janeiro.
Ou seja, agiu com o zelo recomendado a todo administrador ou governante público, que tem por dever constitucional atuar estritamente nos contornos da legalidade. E, no caso do Município do Rio de Janeiro, quem garante a juridicidade das ações do Crivella? A PGM, cujos procuradores com reputações ilibadas, concursados e estáveis integram a OAB, instituição que dá legitimidade às advocacias pública e privada, essenciais à justiça.
Ao ponto: se o Prefeito agiu com o devido respaldo jurídico prévio de órgão jurídico-consultor do Município, como pode ser acusado de atuar ilegalmente?
De duas, uma: i) ou o Prefeito coagiu o procurador do município a redigir parecer favorável à renovação contratual questionada; ii) ou a advocacia pública e o nada passam a significar a mesma coisa. Advocacia como essencial à justiça? Seria uma falácia constitucional.
Óbvio que nenhuma das duas hipóteses são admissíveis. A primeira, porque, sem provas cabais, seria acusação leviana e criminosa; típica calúnia. A segunda, porque é juridicamente impossível atribuir ao texto constitucional um sentido claramente oposto ao que ele inequivocamente diz.
Consequentemente, ao aceitar e dar seguimento ao pedido de impeachment do Prefeito carioca pelo motivo da alegação subjetiva de “ilegalidade” da renovação contratual, jurídica e institucionalmente avalizada pela Procuradoria-Geral do Município, a Câmara dos Vereadores está extrapolando da sua discricionariedade política, transformando-se num tribunal de inquisição, por razões escusas, mascaradas pela imputação de falsa ilegalidade cometida pelo Prefeito, de antemão desmentida por órgão estatal (PGM).
Objeção esperada. O que difere o impeachment da Dilma do atual em face do Crivella? A única nuance em que diferem é o respaldo jurídico estatal prévio que assegurasse a validade dos atos administrativos. A Dilma não agia com base em pareceres previamente elaborados pela AGU, legitimando o que chamaram de “pedaladas fiscais”.
A defesa que a AGU depois lhe prestou foi posterior à tipificação de sua conduta como espécie de infração à lei de responsabilidade fiscal. Defesa, na verdade, patrocinada por político de seu próprio partido político que, à época, era o Advogado-Geral da União, escolhido e nomeado pela própria Dilma. Nítida mistura de interesses público e privado.
Além disso, defesa patrocinada por advogados contratados para inocentá-la não tem a imparcialidade que se exige de um órgão jurídico público, e tampouco força retroativa para descaracterizar a ilegalidade apontada, se a interpretação da lei que a justifica é juridicamente sólida.
Eis o detalhe: legal ou ilegal? Por haver duas interpretações possíveis, coube à Câmara dos Deputados e ao Senado Federal dar a palavra politicamente adequada ao final, com base nas provas colhidas que embasaram o impedimento presidencial.
No caso do Crivella, não há como imputá-lo conduta ilegal. Porque, se a Câmara assim o fizer e decidir por retirá-lo do cargo, simultaneamente a PGM deverá ser extinta, por ser implicitamente tida como um órgão inútil e dispendioso ao contribuinte.
Conclusão. A administração Crivella é ruim? O Prefeito descumpre compromissos assumidos com Vereadores? Os cidadãos cariocas estão insatisfeitos? Sem problema: em outubro de 2020, teremos novas eleições municipais. Nenhum ser humano é capaz de agradar a todos. Quanto mais um político, que, não bastasse ser brasileiro, é ainda notoriamente estigmatizado por sua religião!
O fato é: impeachment tem natureza preponderantemente política? Sim; contudo, requer a observância de parâmetros jurídicos. No caso Crivella, a aceitação obrigatória do fato de o ato administrativo praticado ter sido amparado antecipada e juridicamente pelo próprio Estado.
Ao darem encaminhamento ao processo de impeachment do Crivella, os Vereadores estão não apenas abusando do poder legislativo, como também infringindo regra essencial do jogo democrático. Desprezam o poder do voto do cidadão-eleitor e, por arbítrio, colocam a faca no pescoço do atual Prefeito. Mas provavelmente, sem perceberem, apertam a jugular de qualquer outro Prefeito que venha a tomar posse no futuro. Inclusive, a garganta de algum dos Vereadores da oposição que venha a ser eleito para o cargo n’algum dia. Bastará a gestão municipal não estar a contento político, ou interesses da “coligação” serem contrariados, que a próxima vítima estará previsivelmente sentenciada. O voto do eleitor será puro “café-com-leite”. E a representatividade democrática enterrada.
Já ia me esquecendo: não sou evangélico e nunca votei no Prefeito. Mas rejeito e combato a hipocrisia e a desonestidade intelectual que reinam no “direito” e na “política(gem)” tupiniquins e que os fazem desmerecer o qualificativo democrático.