A reforma trabalhista tem sido assunto bastante debatido. Natural, em vista dos interesses e apegos ideológicos envolvidos.
Como você, leitor, que acompanha meus artigos, já deve ter notado, o enfoque que dou aos assuntos abordados é preponderantemente relacionado à interpretação e argumentação jurídicas. Porque acredito que a evolução do Direito está intimamente ligada a estas atividades, que, lamentavelmente, são realizadas aleatoriamente e segundo o arbítrio da vez. Critérios objetivos mínimos? Somente o “eu penso que” ou o “eu entendo que”.
Com o foco na interpretação jurídica, fiz uma breve leitura da Lei 13.467/2017, que introduziu a notória reforma trabalhista. Das alterações, achei interessante a inserção, no art.8.º, da CLT, do §2.º. Diz o seguinte a nova redação legal: “Súmulas e outros enunciados de jurisprudência editados pelo Tribunal Superior do Trabalho e pelos Tribunais Regionais do Trabalho não poderão restringir direitos legalmente previstos nem criar obrigações que não estejam previstas em lei.”
Redundante? Teoricamente, sim, pois todos sabemos que a competência para criar direitos e deveres, bem como restringi-los, é do legislador. No caso do direito do trabalho, do Congresso Nacional (CF,5.º,II; 22,caput,I). Mas, infelizmente, os tribunais trabalhistas, em geral, “esquecem-se” desta regrinha constitucional básica e fazem questão de demonstrar a vocação para atuarem como o protetor estatal dos trabalhadores. Como se estes, em plena era da informação on line e em tempo real, circulando pelo whatsapp, facebook e instagram, fossem todos e sempre os “coitados”, hipossuficientes, desprotegidos ou desinformados da década de 40 do século passado!
Daí a justificativa para o legislador ter colocado o novo texto na CLT, para que ficasse expressa a proibição de os tribunais trabalhistas criarem deveres ou restringirem direitos via construções interpretativas subjetivas, depois transformadas em súmulas. Diga-se de passagem, criação de deveres para empregadores, assim como restrição de direitos destes. Quando aparecia alguma situação em que legitimamente tivesse que ser reduzido direito de trabalhador, a postura tendia a ser diferente. Mas e o dever de imparcialidade do juiz do trabalho que assim se comporta(va)? Creio que compete aos respectivos refletirem sobre a própria atuação. Há juízes exemplares, cujas posturas estão aí para serem copiadas. Fato é que o legislador acabou de positivar a data inicial do aviso prévio de possível “demissão do judiciário trabalhista”, sinalizando que outras mudanças institucionais para aperfeiçoamento de suas decisões podem ocorrer.
Não implica, contudo, que jamais será permitida a realização de interpretação restritiva de texto legal pelos Tribunais, para que algum direito seja eventualmente limitado. Para tanto, o julgador deverá demonstrar que a restrição foi juridicamente fundamental para sustentar a coerência do sistema jurídico como um todo.
No caso da restrição, a sua validade dependerá exclusivamente do adequado uso de argumento corretivo, o que ficará caracterizado pela observação de seus parâmetros objetivos de controle. Na ocasião, entrará em cena o argumento restritivo da dissociação. (Recomendo Riccardo Guastini. Distinguiendo. Estudios de teoria y metateoría del derecho. 1.ªed. Barcelona: Gedisa editorial, 1999. p.224-227; e meu ebook, Interpretação jurídica coerente: premissas fundamentais e metodologia. p.147-155).
Por este argumento, o intérprete seleciona a expressão linguística do texto que será interpretada, e a subdivide em espécies, diferenciando-as entre si, apesar de, na redação legal, o legislador não tê-las discriminado. Agindo desta forma, o intérprete fixa limite ao significado das palavras do texto, atuando aparentemente de modo mais restritivo do que a literalidade deixa a entender.
Remando propositalmente contra a tendência dos Tribunais do Trabalho, darei um exemplo do uso do argumento da dissociação, para restringir, por interpretação sistemática legítima, e sem desrespeitar a nova regra posta no §2.º, art.8.º, da CLT, suposto direito de ex-empregado a ver reconhecido judicialmente a existência de seu vínculo de emprego recentemente encerrado. (O exemplo, que já comentei sob outro aspecto, foi originalmente desenvolvido pelo excelente juiz do trabalho e jurista, Fábio Rodrigues Gomes).
Imaginemos um contrato de trabalho firmado entre um ator renomado e a Rede Globo, pelo qual a emissora oferece remuneração mensal de 100 mil reais, mais compensação financeira pelo uso do direito de imagem. Em contrapartida, visando à redução de encargos trabalhistas, a contratante propôs que o ator fosse contratado por meio de pessoa jurídica de sua titularidade, o que, para efeitos tributários, ainda seria vantajoso para ambas as partes. Proposta aceita sem qualquer vício de vontade, contrato fechado.
Após dez anos, o contrato é encerrado pelas partes, de modo amigável e em comum acordo. Dois meses após, o ator ingressa com ação trabalhista, alegando ter havido, de fato, relação de emprego, nos termos do art.3.º, da CLT, porque o contrato rescindido havia fraudado a regra trabalhista que o qualifica como empregado. O que fazer?
O argumento da dissociação permite que o intérprete faça diferenciação onde o legislador não a fez. Em se tratando da qualificação de alguém como empregado, o legislador foi taxativo.
CLT,3º: “Considera-se empregado toda pessoa física que prestar serviços de natureza não eventual a empregador, sob a dependência deste e mediante salário.” Parágrafo único: “Não haverá distinções relativas à espécie de emprego e à condição de trabalhador, nem entre o trabalho intelectual, técnico e manual.”
Ou seja, em tese, a regra contida neste texto incidiu sobre a situação jurídica vivenciada pelo ator. Digo em tese, pois, efetivamente, não incidiu. Por quê? Porque, para que a interpretação jurídica seja adequada, o seu resultado deve respeitar a sistematicidade ou unidade do sistema jurídico. Mais especificamente: se o Direito é uma unidade integrada e é dividido em ramos apenas para facilitar o seu estudo, significa que uma solução jurídica para resolver conflito no âmbito do direito do trabalho não pode, em hipótese alguma, afrontar regra de teoria geral do direito ou de direito civil, por exemplo. Nem de qualquer outro ramo do direito.
Na hipótese, o art.150, do CC, é inequívoco ao afirmar: “Se ambas as partes procederem com dolo, nenhuma pode alegá-lo para anular o negócio, ou reclamar indenização.” Isto é, se o ator aceitou livremente fechar o contrato com a Globo e dele beneficiar-se financeiramente, dispensando a presumida proteção jurídica inerente a vínculos de emprego (CLT,3.º), pretender que o poder judiciário trabalhista faça tabula rasa da configuração flagrante do dolo recíproco (CC,150) tangencia a má-fé no exercício do direito de ação (CLT,769; CPC,80,caput,I e II).
Poderia restar ainda uma dúvida: como interpretar o art.9.º, da CLT, segundo o qual “Serão nulos de pleno direito os atos praticados com o objetivo de desvirtuar, impedir ou fraudar a aplicação dos preceitos contidos na presente Consolidação”? Ora, nulos serão todos os atos praticados em que o empregado tenha tido o seu consentimento viciado de algum modo que o contrato pactuado tenha lhe sido materialmente lesivo (CC,166-170). No exemplo, longe disto!
O juiz do trabalho e, sucessivamente, o Tribunal, podem argumentar da seguinte forma. Primeiramente, i) o sentido da palavra empregado, para que seja reconhecida uma legítima relação de emprego, abrange apenas as pessoas físicas que não firmaram o contrato de trabalho valendo-se de conluio com o empregador, inexistindo, pois, dolo recíproco entre ambos. Por conseguinte, ii) pessoas físicas que, por livre arbítrio, aceitaram contornar as regras inerentes à relação de emprego, em sintonia de vontade com o empregador, porque angariariam muito mais vantagens econômicas, não têm o direito subjetivo ao arrependimento, visando a compensações financeiras, depois de ter sido finalizado o contrato; a vedação legal ao dolo recíproco, nas hipóteses em que um dos contratantes manifesta posteriormente a intenção de prejudicar o outro, é evidente. Como conclusão, iii) a relação de emprego juridicamente legítima somente existirá se comprovado, pelo ator, que a sua vontade, ao aceitar a conhecida “pejotização”, foi viciada.
Pouco viável que isto ocorra. Esta possibilidade de comprovação de vício de vontade, teoricamente, não passa pelo crivo de qualquer ser humano com um mínimo de lucidez e noção de dinheiro. Receber 100 mil reais por mês, sucessivamente, durante os dez anos de duração contratual, acrescidos ainda de bônus financeiros pelo direito de imagem cedido, é empiricamente incompatível com a existência de coação moral como vício de consentimento.
Seria, portanto, perfeitamente legal e legítima, súmula editada por Tribunal do Trabalho, talvez, com o seguinte conteúdo:
“Não se qualifica como empregado, nos moldes do art.3.º, da CLT, a pessoa física que, voluntariamente, tenha firmado contrato de trabalho com empregador, por meio de pessoa jurídica de sua titularidade, por ter-lhe sido financeiramente vantajoso. Para que seja reconhecida a existência de relação de emprego, dissimulada por outra espécie contratual, mostra-se imperiosa a inexistência de dolo recíproco entre os contratantes, pois este vício, se configurado, impede que uma das partes utilize-se de eventual direito para beneficiar-se em detrimento da outra, por força do art.150, do CC.”
O que importa, de fato, é o juiz aprender como usar ou, se já souber, usar corretamente o argumento da dissociação. Para que dissocie validamente as possibilidades de sentido da expressão linguística posta pelo legislador, satisfatório que a separação entre significados semanticamente possíveis tenha fundamento jurídico identificável objetivamente dentro do próprio sistema jurídico.
Com sutileza, mas com clareza, a mensagem final foi transmitida aos Tribunais do Trabalho pelo Congresso Nacional: não inventem direito para fazerem valer opções ideológicas relacionadas ao que esperam como ideal de relação de trabalho; sejam, sim, Tribunais imparciais, que interpretam direito e são conscientes de que a proteção do trabalhador (CF,7.º,I) e a busca do pleno emprego (CF,170,VIII) são, num Estado democrático e de direito capitalista, indissociáveis do respeito à liberdade de escolha empresarial para estruturar o seu negócio (CF,170,caput), procurando a maximização dos lucros e a minimização dos custos.