Renato Russo morreu há aproximados 20 anos. Mas era um visionário. “Que país é esse?”, refrão marcante de uma de suas músicas inesquecíveis, está mais atual do que nunca! Na época, as picaretagens
da casta política brasileira já eram de longa data conhecidas; apenas não havia mecanismos para investigá-las e a punição exemplar era impensável.
Dias atrás, o STF julgou o Habeas Corpus impetrado pelo ex-diretor da PETROBRAS, Renato Duque, tendo sido indeferido o pedido de liberdade, por unanimidade, pela Segunda Turma, da qual integra o notório supremo ministro Gilmar Mendes, com posições para lá de controversas. Mas o próprio não perdeu a oportunidade de ficar calado, verbalizando mais uma crítica fora do contexto real brasileiro de criminalidade continuada e permanente, na contramão do saneamento político em andamento que vem sendo possibilitado pela Operação Lava Jato, atualmente, elevada merecidamente quase que à categoria de um Quarto Poder independente!
O que disse o supremo ministro, com seu “notável saber”?
“A prisão provisória tem pressupostos muito claros. Não se faz também para satisfazer uma sanha da opinião pública ou uma sanha da opinião publicada. Não é para isso que se faz a prisão provisória. Ela tem pressupostos que devemos observar.”
“Não se justifica prisão provisória de dois anos sem que haja outros fundamentos. Nós temos que discutir”.
O supremo ministro vive em Marte? Como tem a ousadia de tentar acabar com a credibilidade do sistema jurídico brasileiro? Não sabe ele que Direito permissivo com ilicitudes tende a descambar para um Estado Hobbesiano, com predomínio ilimitado da autotutela e da lei do mais forte?
O código de processo penal não estabelece limites para a duração da prisão preventiva (CPP,312). Basta que algum pressuposto esteja presente, tais como o risco de o investigado ou réu atrapalhar as investigações em curso, por meio de destruição de provas, de conluios entre comparsas, de ocultação de dinheiro surrupiado dos cofres públicos via corrupção, de reincidir em delitos, dentre outros.
Sérgio Moro (PR) ou Marcelo Bretas (RJ) são arbitrários? Têm tendência ao sadismo? São torturadores? Mantêm poderosos presos provisoriamente por longo período, sem a existência de fundamentos jurídicos sólidos e empiricamente comprovados? Data venia, os fatos falam por si. Se não houvesse motivos para a manutenção das prisões preventivas de longa duração, os Tribunais Regionais Federal da 4.ª (RS) e da 2.ª Região (RJ), o STJ ou mesmo o STF já as teriam revogado.
Diferentemente do que disse Gilmar Mendes, não são as opiniões pública e publicada que têm sanha e estão sedentas por vingança. Elas – as opiniões de profissionais sérios, responsáveis e muito bem-informados sobre a realidade do país, que o ministro teima em desprezar – apenas clamam pela aplicação isenta da lei, sem olhar a quem. É o supremo ministro que se mostra assanhado política e juridicamente. Com desenvoltura “fora da curva” para quem está magistrado e deve dar o exemplo, abusa do microfone midiático em detrimento de agentes públicos, de instituições ou de atuações institucionais com promiscuidade inigualável. E não mede esforços para tramar politicamente em prol de seus afins, quando estes estão sendo coagidos ou abraçados apertadamente pela força da lei, pouco se importando se vai ou não manchar a credibilidade da Justiça. Acusa Procuradoria e Judiciário de abuso de autoridade, mas, valendo-se de cegueira proposital, recusa-se a se olhar no espelho e reconhecer que a expressão “abuso” com ele se confunde.
Este ano de 2017 está indigesto para os brasileiros em geral. Em especial, para aqueles moralmente idôneos, honestos e verdadeiramente inocentes. Normalmente, são pessoas com sensos de justiça e coerência relativamente confiáveis. Confiáveis, segundo Daniel Kahneman, porque o brasileiro indignado firma o seu juízo moral e de justiça depois de anos de experiências vividas e aprendizados absorvidos, em um ambiente regular (sociedade brasileira) e de ocorrências repetitivas.
Os acontecimentos e fatos trágicos, os crimes hediondos ou de grande repercussão, juntos com a omissão do Estado em recompor juridicamente os estragos causados, ficam gravados na memória das pessoas. Essas informações, por suas reiterações, passam ao subconsciente de modo imperceptível. Tão logo surja um evento-surpresa que gere gatilho emocional intenso, o sistema decisório intuitivo é acionado. Automaticamente, ele recorre aos arquivos da memória em busca de informações armazenadas, e faz as associações pertinentes.
Alguém tem dúvidas de que os brasileiros em geral possuem sensos de injustiça e impunidade equivalentes entre si, por serem nutridos constantemente pelos meios de comunicação com notícias péssimas, envolvendo a correlação entre prática e consumação de crimes, os danos acarretados e a ausência de punição efetiva pelo Estado? Porque, no íntimo, o brasileiro leigo tem consciência das finalidades do Direito (prevenir ilícitos, reprimi-los, e pacificar conflitos). Porém, no dia a dia, presencia o seu descumprimento, sem que seja acarretada qualquer penalidade oficial.
Em outras palavras, já está gravado no subconsciente individual que o direito penal criado pelos Tribunais é leniente em relação à prática de ilícitos por gente poderosa. Fatos graves ocorrem diariamente por todos os cantos do país e o sistema jurídico não diz a que veio. Não por acaso o ministro Barroso disse que a ineficiência do direito penal tornou o Brasil o “país de ricos delinquentes”.
Se um Ministro do STF reconhece a inoperância do direito penal na sua posição de cidadão que experimenta e enxerga nitidamente a realidade nacional, da mesma forma, as pessoas que constituem a opinião pública ou publicada, o empresário responsável, o empregado, o desempregado, o mendigo, ou qualquer outro indivíduo com o seu juízo perfeito em lucidez, sabe intuitivamente que algo está errado especificamente com esse direito.
Mais objetivamente, as pessoas de bem não compreendem o porquê de uma organização criminosa infiltrada no comando dos órgãos do Estado ainda permanecer juridicamente intocável, como se nada estivesse acontecendo, ou nada tivesse sido revelado da delinquência sistêmica. E, pior: esses cidadãos são ainda obrigados a suportar a própria indignação, provocada pelos escancarados “malfeitos” executados à luz do dia por políticos de “cara lavada”, mentirosos, debochados e “presumidamente inocentes”, sem que haja, em contrapartida, qualquer resposta efetiva e imediata do Direito, e tampouco críticas contundentes de juristas! Aliás, como corretamente disse Joaquim Barbosa, boa parcela desses estudiosos são – ao menos inconscientemente – pró-impunidade, pois se aferram a teses doutrinárias utópicas, menosprezam a nossa realidade e interpretam a Constituição de forma distorcida. Infelizmente, o ex-Ministro ficou juridicamente abandonado.
É um silêncio doutrinário eloquente, mas, paradoxalmente, ensurdecedor, capaz de estourar os tímpanos dos brasileiros que não conseguem se abstrair da bandalheira em vigor e maciçamente difundida nos meios de comunicação e nas mídias sociais!
Fazendo um exercício de autoquestionamento mental, cheguei a uma conclusão. Considerando-me no grupo dos inconformados com a rapinagem política impune a la brasileira, vislumbrei pelo menos duas causas para que o sentimento de indignação ecloda.
A primeira causa: somos obrigados a engolir um sapo gigantesco e que poderia facilmente ingressar no Guiness Book, se não fosse um anfíbio metafórico. É um sapão ancião; tem décadas de vida cultural e amoral; agia sorrateiramente, e até então quietinho, no submundo do mecanismo de exploração do poder, engordando cada vez mais, em troca da fome do seu tutelado girino, conhecido como povo.
O sapão ancião traduz-se na organização política criminosa que se apropriou há anos do Estado, enriquece às custas dele, e faz a população refém de sua falência (olha o RJ aí!), devido a seus desmandos. Os políticos caras-de-pau que impunemente a integram, com desfaçatez incomparável, não só negam publicamente as falcatruas pelas quais são denunciados ou condenados, apresentando alegações esfarrapadas e atentatórias contra a nossa inteligência.
Pior do que a covardia de não assumirem a autoria inegável e sua responsabilidade, eles ainda tentam usar do poder que possuem em função do cargo eletivo, para autoblindarem-se velada ou abertamente. Vale tudo na república de compadrios: produção de autoanistias legais, isentando-se de punição pelos crimes cometidos; ameaçar juízes e procuradores com aprovação de nova lei de abuso de autoridade, com tipos penais abertos a qualquer interpretação que favoreça o poder intimidatório da classe política; revogação da possibilidade de se fechar acordos de delação premiada, caso o investigado esteja preso; criação oportunista de Ministério, para assegurar prerrogativa de foro ao bandido político da vez; substituição de Ministro da Justiça, com propósito de tolher o trabalho da Polícia Federal, dentre outras inimagináveis possibilidades.
Contra esse primeiro sapão ancião que nos é enfiado goela abaixo, o único modo de não nos sujeitarmos a essa tortura é matando-o antecipadamente. No regime democrático-anárquico brasileiro, somente com muita pressão popular ele será dizimado. E, daí, a nossa pseudorrepública, república nominal ou internacionalmente conhecida república das bananas, poderá elevar-se ao status de República de fato.
A segunda causa para o sentimento de indignação que assola os brasileiros honestos: também temos sido obrigados, de um ano para cá, a engolir mais um sapo. Um sapo mais jovem; anfíbio único, mas gigantesco e extremamente poderoso, invulnerável, sem papas na língua. É um supremo sapo. É um sapo nervoso, arrogante, que grita, impõe a sua vontade a forceps, sem escrúpulos para defender seus amigos do peito, membros da organização criminosa sintetizada no sapão ancião. Felizmente, ele tem notório saber jurídico, que, em lapso de clareza intelectual, poderá ser útil para a sociedade em algum momento futuro. Mas, infelizmente, utiliza-se frequentemente desse saber, para deteriorar a paz social, além da eficácia e credibilidade do Direito.
Esse supremo sapo evidencia a postura que vem assumindo despudoradamente o supremo ministro Gilmar Mendes. Não tem a menor vergonha de expor e colocar em risco a respeitabilidade do Supremo Tribunal Federal. Altera seu posicionamento jurídico ao sabor do seu humor. E o motivo de oscilação de seu humor já foi desvelado: vai depender de quem seja o bandido flagrado da ocasião, durante o desenrolar da Operação Lava-Jato e congêneres. Previsibilidade na aplicação do Direito? Extermínio da corrupção sistêmica descoberta? Credibilidade do STF como instituição de Estado? Revolta da população com o assalto continuado do erário? Nada disso importa.
Dentre os que estão sendo asfixiados por esse supremo sapo está o honrado professor criminalista Luiz Flávio Gomes. Com a sua autoridade de acadêmico e doutrinador, que zela pela integridade do sistema jurídico, constatou: “Gilmar é uma espécie de porta-voz do sistema de corrupção.”
Como podemos nos poupar de engolir o supremo sapo? Apenas retirando-lhe seu supremo poder. E quem é juridicamente capaz de fazer isso? Ou o Congresso Nacional, via impeachment (CF,52,II); ou os outros dez supremos ministros, como já se manifestou Luiz Flávio Gomes, não permitindo que a jurisprudência da Corte fique numa espécie de vai-e-vem, condicionado ao arbítrio do supremo Gilmar Mendes, sem que tenha havido qualquer modificação do contexto social. Já passou da hora de acabarmos com o Estado de compadrios, como deixou claro o ministro Barroso.
Dá para confiarmos? Apenas na segunda opção. Por que um Senado composto por um terço de senadores ladrões iria condenar um ministro do STF que se mostra conivente com o que eles fazem? Finquemos nossas esperanças na segunda hipótese: acreditarmos na autorresponsabilidade dos demais ministros, e no dever de zelarem pela credibilidade da Suprema Corte e do Judiciário como um todo. Que eles impeçam a profecia do ex-Ministro Joaquim Barbosa de se materializar. Porque não somente o STF e o Judiciário estarão da lona, mas a própria República e o regime democrático.