Caso Adriana Anselmo faz barulho: juízes erraram?
Em artigo publicado no Conjur, sob o título “O processo penal e os ‘Estados de Exceção Vingativos” – o caso Adriana Anselmo”, o advogado Rafael Tomaz de Oliveira fez sua análise do caso Adriana Anselmo e deixou a entender que ela esteve em prisão preventiva ilegalmente por 4 meses. Por quê? Porque o art.318, V, do CPP, fixa, como uma das condições para a prisão preventiva ser substituída por domiciliar, o fato de o preso ser “mulher com filho de até 12 (doze) anos de idade incompletos“, estando, isto, devidamente comprovado (parágrafo único).
Seu raciocínio partiu da premissa de que a expressão “poderá o juiz“, constante no caput do art.318, apenas pode significar “deverá o juiz” (“poderá o juiz substituir a prisão preventiva pela domiciliar quando o agente for…”), quando for inequívoca a subsunção da situação fática do preso a alguma das hipóteses legais autorizativas da substituição por prisão domiciliar, tipificadas no referido texto legal.
Disse, em síntese, que o judiciário não pode se deixar influenciar pelo espírito vingativo da população, devendo, ao contrário, prestar a devida referência à lei. E, pelo caminho, foi o autor desferindo críticas às decisões dos juízes envolvidos no caso, como o juiz Marcelo Bretas e o desembargador federal, Abel Gomes. Críticas plenamente aceitáveis; teorias jurídicas divergem e controvertem-se.
Data venia, permito-me discordar da premissa utilizada pelo advogado do Rio Grande do Sul, parceiro de estudos do professor Lenio Streck.
Quando o legislador emprega a expressão “poderá“, não é por desconhecimento do idioma português. Se é vedada constitucionalmente a candidatura de analfabeto para a ocupação de cargo eletivo (art.14,§4), há que se presumir que o candidato eleito deputado federal ou senador saiba que a palavra “poderá” implica numa faculdade, no exercício do poder discricionário do julgador . E discricionariedade não quer dizer arbítrio; isto é consenso na doutrina. Os livros diversos de direito administrativo espalhados no país e exterior estão disponíveis para consulta.
Digo mais: o poder discricionário é adequado ao exercício da jurisdição criminal, pois cada crime cometido tem características únicas. O agente é insubstituível em sua personalidade e periculosidade; os atos têm gravidade e intensidade graduais e diversas; as consequências sociais decorrentes dos delitos variam; a corrosão da credibilidade do Direito pode ser mais ou menos acentuada, agravando de modo maior ou menor a sensação de insegurança dos cidadãos, o que, opostamente, aumenta a responsabilidade estatal em cumprir o seu dever constitucional, prescrito no art.144, caput, da CF (“A segurança pública, dever do Estado, direito e responsabilidade de todos, é exercida pela preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio (…)”).
Então, sendo a prática delituosa personalíssima, natural que todo benefício legal passível de concessão ao réu ou condenado deva ser analisado caso a caso pelo juiz competente. Da mesma forma que o juiz analisa e considera características personalíssimas do réu para fixar sua pena concreta, também o benefício da substituição da prisão preventiva em domiciliar, na hipótese prevista no art.318,V, do CPP, deve levar em conta particularidades inerentes à mulher e ao contexto formado pela consumação do crime, incluindo-se seus efeitos deletérios para a sociedade e para a credibilidade e eficácia do próprio sistema jurídico-penal.
Para reforçar o que disse, transcrevo o art.59, caput, do CP, o qual expressa os critérios a serem analisados no momento de calcular a pena a ser imposta ao condenado: “O juiz, atendendo à culpabilidade, aos antecedentes, à conduta social, à personalidade do agente, aos motivos, às circunstâncias e conseqüências do crime, bem como ao comportamento da vítima, estabelecerá, conforme seja necessário e suficiente para reprovação e prevenção do crime:(…)”. Ora, se o juiz pode fixar a quantidade da pena real, levando em conta análise discricionária de elementos subjetivos referentes ao infrator, com toda a coerência, o sistema jurídico atribuiu ao juiz poder discricionário para avaliar a conveniência e oportunidade da concessão do benefício da substituição de pena em questão. Se pode “o mais” (fixar pena privativa de liberdade), pode “o menos” (autorizar a substituição de pena). E poder devidamente institucionalizado no art.318.
O fato de uma das hipóteses do art.318 estar configurada apenas obriga o julgador a apreciar o pedido de substituição da pena, feito pela defesa do réu. E somente isto. O cumprimento de um dos requisitos contidos no texto legal cria-lhe mera expectativa de direito. A conformação deste direito dependerá da avaliação global de sua situação pelo juiz.
Portanto, “poderá” não significa “deverá“. Implica, sim, em poder discricionário do julgador, conferido a ele pelo legislador, no exercício de sua competência.
Entro no ponto central: se o juiz criminal está autorizado por lei a decidir discricionariamente sobre a conversão da prisão preventiva em domiciliar quando restasse concretizado algum dos requisitos expressos no art.318, do CPP (como ser mulher e ter filho menor de 12 anos, caso da Adriana Anselmo), o que justificaria uma decisão denegatória da substituição da pena? E como poderíamos controlá-la para impedirmos que o arbítrio seja mascarado pela discricionariedade?
Invertendo a ordem da resposta, o controle do exercício do poder discricionário ao decidir somente pode ser feito pela análise acurada da fundamentação apresentada. É o dever de fundamentar adequadamente as suas decisões o que legitima o Poder Judiciário a atuar de modo contramajoritário num regime democrático (CF,93,IX).
Agora, se a fundamentação de eventual decisão denegatória do benefício se mostrar i) racionalmente incoerente (silogismo logicamente defeituoso), ii) contraditória com alguma outra regra jurídica – e, por isso, violadora do Direito como unidade -, e iii) insuficiente por omitir resposta indispensável para rebater argumento apresentado pela defesa, que seja capaz de fragilizar a sustentação jurídica ou empírica da premissa maior escolhida pelo juiz para desenvolver sua argumentação – o que caracterizaria arbítrio judicial -, deverá ela ser revogada e, naturalmente, o benefício da prisão domiciliar ser-lhe concedido.
Mas que tipos de argumentos o juiz penal precisa expor, para que a fundamentação de uma eventual decisão negativa da substituição da pena preventiva em domiciliar não seja classificada como arbitrária ou de caráter vingativo, em razão dos estragos financeiros e sociais decorrentes de comportamento(s) criminoso(s) da presa?
Infelizmente, não há como identificá-los de antemão. O Direito é criado para regulamentar as relações sociais e, sobretudo, para inibir e pacificar conflitos de interesses. Direito é composto por textos e normas. E, normas, são interpretações que preponderam. São, em essência, atos de vontade do intérprete. É fato.
Os Ministros do STF Marco Aurélio e Ricardo Lewandowski não me deixam errar: a soltura do goleiro Bruno (homicida qualificado condenado) por decisão daquele, e a interpretação “bizarra” (peço vênia e pego emprestada a expressão do Ministro Gilmar Mendes) do parágrafo único, art.52, da CF, feita por este, por ocasião do julgamento do impeachment da ex-presidente, ratificam a natureza jurídica da interpretação como sendo espécie de ato de vontade.
Quando a lei penal e processual penal são demandadas, crime ocorreu. Norma penal foi violada. Indivíduo inocente, cumpridor de suas obrigações como cidadão, suportou um dano, uma ofensa, foi vitimado de algum modo. Sua família sofreu. O Estado nada faz de ofício para compensá-los materialmente, ofendido e família, ajudando-os a amenizar a dor, em virtude de sua negligência em impedir, combater e reprimir condutas criminosas. Quando muito, só depois de vários anos de trâmite de processo indenizatório instaurado em face do Leviatã! Para os residentes na região do crime, a sensação de (e a preocupação com a) insegurança passou a preponderar.
Ou, então, a conduta delituosa se sofistica. A Fazenda Pública é saqueada pela corrução, pelo peculato, por fraudes em licitação, pelos artifícios de lavagem de dinheiro, dentre outros meios de usurpar criminosamente recursos da população (boa parte destes oriunda de pagamento de impostos sobre alimentos e salários), os quais deveriam ser investidos em políticas públicas, visando a amenizar as deficiência de serviços essenciais como saúde, educação e segurança. A situação do Estado do Rio de Janeiro é paradigmática.
Por causa dessas “besteirinhas” – diga-se de passagem, totalmente desprezadas ou omitidas em praticamente qualquer artigo escrito por juristas, advogados criminalistas, e defensores de direitos humanos às avessas – é que o Direito é “convidado” a atuar e restaurar a paz social, cabendo a sua aplicação ao Poder Judiciário. E, por seu intermédio, o Estado passa a cumprir o seu dever constitucional de zelar pela segurança pública e individual, ou de restaurá-la, pelo uso da força institucionalizada pelo Direito (art.144,caput).
Quando o Estado se omite neste papel, não apenas a insegurança pública reina, como, também, a expressão “responsabilidade de todos” (art.144,caput) transforma-se em “letra morta“. Porque, i) se todos temos responsabilidade pela segurança pública, obviamente, ii) se alguém comete um crime, provoca distúrbios na segurança e não se submete a qualquer sansão jurídica restritiva de direitos, iii) natural que o direito penal entre em descrédito em função de sua ineficácia inibitória e repressiva.
Daí a sensação de impunidade e descrédito que o Direito penal transfere à população. O fim desta sensação e o resgate da credibilidade jurídica nada têm a ver com vontade de vingança! É uma leitura totalmente distorcida dos fatos, por ignorar completamente tanto a ideia de Direito uno, quanto o outro lado da relação penal: o lado da coletividade, formada por cidadãos que agem no campo da licitude, ora representada pelo Estado-juiz.
Paradoxalmente, um direito penal fraco estimula, indiretamente, o exercício arbitrário das próprias razões, delito tipificado no próprio código penal (Art.345: “Fazer justiça pelas próprias mãos, para satisfazer pretensão, embora legítima, salvo quando a lei o permite: Pena – detenção, de quinze dias a um mês, ou multa, além da pena correspondente à violência. Parágrafo único – Se não há emprego de violência, somente se procede mediante queixa.“).
Voltando ao art.318, do CPP: se o interpretarmos, isoladamente, apenas considerando aspectos sintáticos e semânticos do texto, não há dúvidas de que a expressão “poderá” significa “faculdade“. O legislador atribuiu expressamente ao juiz criminal um poder discricionário, controlável pelo estudo das fundamentações apresentadas nas decisões. Se ampliarmos o campo da atividade interpretativa, visando a um resultado que respeite a sistematicidade do Direito, o julgador deverá incluir no objeto da interpretação não apenas outros textos normativos – tais como o art.144, caput, da CF, o art.345, do CP -, mas, sobretudo, deverá considerar perspectivas pragmáticas, o contexto de aplicação, os efeitos que sua decisão acarretarão socialmente. Mais uma razão que demonstra a pertinência de o legislador ter conferido poder discricionário ao juiz criminal.
Cai por terra, aqui, o argumento de Rafael Tomaz, no sentido de que a prisão domiciliar deveria ser deferida pelos respectivos juízes, obrigatória e indistintamente, a todas as mulheres presas preventivamente e que tenham filhos menores de 12 anos. Não necessariamente. Cada caso tem nuances específicas. O Direito é uma unidade, devendo ser interpretado sistematicamente, observando-se elementos sintáticos, semânticos e pragmáticos. E, exatamente porque existem várias espécies de crimes, com gravidades, lesividades e consequências potencialmente diversas, é que a situação deve ser analisada pontualmente pelo juiz. Gravidade do crime ou a lesividade e seus efeitos não são requisitos condicionantes da conversão ou não da prisão preventiva em domiciliar. Mas podem influenciar, sim, o exercício do poder discricionário do juiz, na sua análise do contexto interpretativo, de modo a ajudá-lo na construção dos fundamentos de sua decisão.
Se deve ser assim, a decisão do desembargador federal Abel Gomes, ao ter revogado a prisão domiciliar da ex-primeira dama do governo do RJ, sob o argumento de violação da igualdade de tratamento, em relação às diversas detentas que podem estar em situação similar e não auferem o benefício legal, foi juridicamente insuficiente em sua fundamentação. Não digo juridicamente inadequada, porque, se fosse ampliado o contexto da interpretação, bem como fossem esmiuçados os efeitos pragmáticos e seus reflexos sociais no próprio Direito como um todo, a revogação poderia ser juridicamente adequada.
Para empregarmos, neste caso, o argumento da igualdade de tratamento, teríamos que pressupor que a expressão “poderá” tem o sentido de “deverá“. Seria como se todos os juízes tivessem o dever de converter a prisão preventiva em domiciliar, tendo em vista algum caso paradigmático, e não o tivessem fazendo. Não se trata disso.
Termino, com uma constatação incômoda: infelizmente, aqui no Brasil, os juízes – representados, atualmente, por Sérgio Moro e Marcelo Bretas – que atuam com eficiência e seriedade, buscando combater a criminalidade por meio de uma interpretação do direito penal adequada e mais restritiva de direitos – o que é plenamente desejável, para que o Direito tenha credibilidade e cumpra seu papel predominantemente inibitório – não recebem apoio de juristas e advogados criminalistas.
Pelo contrário. De modo retórico e esperneante, a elite dos criminalistas, em seus ensaios e discursos, faz questão de omitir os efeitos trágicos das condutas criminosas para a sociedade e para o Direito – como se esse contexto fosse desprezível e não compusesse o objeto da interpretação – e, ainda, fica repisando o argumento fantasioso de que a população quer vingança, tentando “vender” essa ideia junto aos tribunais, de modo a influenciar na construção de uma jurisprudência penal “garantista” (ou anarquista) que seria adequada à Suíça, por exemplo; jamais ao Brasil!